Conto das terças-feiras – Jipe, personagem da região cacaueira da Bahia
Gilberto Carvalho Pereira – Fortaleza, CE, 19 de setembro de 2017
Morei e trabalhei nas terras de Jorge Amado, nas terras da Gabriela, nas terras do cacau entre os anos de 1967 e 1980. Neste período, como Jorge Amado, conheci muitos personagens interessantes como: Dr. Pasta Pura, senhor que andava pelas ruas de Itabuna eternamente vestido de paletó e gravata, sempre com uma pasta tipo executivo, sem nada dentro; o Cobrinha, sempre embriagado; o homossexual Zéis, inseparável de sua enceradeira a correr pela Avenida do Cinquentenário, para realizar faxina em diferentes casas; o Papai Noel, senhor idoso, que ostentava vasta barba branca e morava na Praça Adami. Outros mais, como o personagem de nossa história de hoje, o Jipe.
De nome de batismo Afrânio Batista de Queiroz, Jipe era conhecido nas cidades de Itabuna, Ilhéus, Uruçuca, Buerarema, Itajuípe, e outras mais, cidades que formam a Região Cacaueira da Bahia. Franzino, estatura mediana e portador de uma condição física invejável, pois percorria dezenas de quilômetros a andar a trote, sem se cansar, entre as cidades circunvizinhas à Itabuna.
Travestido de jipe, nosso personagem carregava no corpo duas placas identificadoras de veículo, uma na frente e outra atrás, um espelho retrovisor fixado sobre o ombro esquerdo, uma buzina de corneta com pêra de borracha amarrada na cintura e, do lado direito, uma lanterna pendurada por um velho e surrado cinto. Nas mãos um volante, conhecido também como guidom ou guidão. Portava ainda enormes óculos – para ele, para-brisa – e um relógio – velocímetro. Trazia ainda um pedaço de arame duro apontado para o céu – uma antena.
Na maior parte do seu tempo Jipe ficava andando pelas ruas de Itabuna, posicionando-se sempre do lado direito da via, respeitando os sinais, afastando-se para permitir a passagem de ‘outro carro’, ultrapassando, com cuidado outros carros, buzinando quando era preciso, fazendo com a boca o som de freadas bruscas, agindo como se fosse um veículo. Jamais dava carona e também não aceitava, com o argumento de “um carro não pode andar dentro de outro carro”, sua lógica apoiada na assumida condição. Sempre quando precisava estacionar ou mudar de direção fazia sinal de advertência com a mão, apontando a direção pretendida.
Essa mania de se considerar um veículo veio de uma desilusão. Ainda menino, Afrânio, quando não estava na escola, ficava horas na porta de sua casa observando os carros que por ele passavam, reconhecia-os de olhos fechados pelo ronco do motor. Tanto era sua admiração por esse tipo de veículo que ele passou a fabricar seus próprios brinquedos, carrinhos a partir de latas, tornando real sua vontade de possui-los. Era tão grande o desejo de possuir um carro de verdade, daqueles que circulavam em estradas verdadeiras, não em estradas imaginárias, que isso se tornou ideia fixa.
Filho de pai alfaiate Afrânio vivia a lhe perguntar quando teria um carro verdadeiro, um carro que ele pudesse dirigir, sair percorrendo toda a região cacaueira observando suas belezas e farturas. Seu pai, na certeza da impossibilidade de atender ao filho e já preocupado com as constantes investidas do garoto e no que isso iria levar, prometeu que se ele concluísse o curso primário ganharia o seu tão almejado carro. Aquela promessa animou Afrânio que passou a estudar com afinco, com perseverança. Infelizmente, antes de ver seu sonho realizado o garoto veio a ficar órfão de pai e mãe, antes mesmo de completar os dez anos de idade. Obrigado a morar com uma tia com ela viveu durante sete anos, quando novamente uma desgraça se abateu sobre sua vida, a morte da tia. Agora, sem parente nem aderente conhecidos, Afrânio foi morar na cidade de Jequié e lá arranjou um emprego em um hotel. Em um acidente ele bateu fortemente com a cabeça em uma pilastra que veio comprometer sua capacidade de distinguir entre a realidade e a fantasia.
Foi esse acidente que fez vir à tona o Jipe, personalidade edificada no subconsciente de Afrânio Batista. Por muitas vezes, principalmente aos domingos, quando me dirigia às praias de Ilhéus encontrei aquela figura na estrada, em seu trote costumeiro rumo à cidade de Ilhéus. Não sei se ele frequentava praia ou se ia simplesmente porque muitos papa-jacas – itabunenses – se dirigiam em seus carros para as praias dos papa-caranguejos, os ilheenses. Era assim que os habitantes das duas cidades, jocosamente, se tratavam.
Assim, Jipe viveu sua confusão de aparência com realidade, não maltratava ninguém, não era maltratado pelas pessoas que por ele passavam. Nascido em 1918, Jipe deixou de trafegar pelas estradas da Região Cacaueira da Bahia depois de uma doença que o prostrou por alguns anos, vindo a falecer com 92 anos. Foi fazer sua viagem derradeira a caminho do azul do céu. Lá, as portas estavam abertas para receber o jipe e seu condutor, em atendimento ao que Jesus ordenou: “Deixai vir a mim as crianças, não as impeçais, pois, o Reino dos céus pertence aos que se tornam semelhantes a elas” (Mateus 19:14).