Suave é o abandono
“Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.” Drummond
A brisa matutina começa a ceder espaço ao sufocante calor do dia. Homens e mulheres desocupados saem de dentro de seus casebres. Procuram uma aragem que lhes refresque a pele esquentada pelos tetos baixos e pela falta de ventilação de suas casas. As pequenas árvores das calçadas e a falta de paredes em suas varandas ajudam-nos a suportar a quentura. Nessa disposição de corpo e espírito gastam longas horas observando as pessoas que passam.
Algumas dessas pessoas não entendem por qual razão os moradores da Vila do Sossego são capazes de permanecer horas a fio, sentados e conversando; olhando os transeuntes como se não houvesse nada melhor para fazer. Os apressados visitantes passam de carro, mapeando a cidade para algum projeto social. Veem os moradores através do vidro fumê dos veículos. Transitam como fantasmas, medindo o medo dos vivos.
Por volta das dez da manhã começam os barulhos de som em alto volume, de televisões, de motores de carro sendo acelerados, de mulheres gritando com seus filhos, de sorveteiros anunciando o seu produto e de cães latindo ao redor. Na rua do meio, alguns moradores fazem reformas. Então, é possível ouvir o barulhar monótono da betoneira, as primeiras gargalhadas dos pedreiros e as implicações deles com seus ajudantes de obras.
Na área central da vila, próximo ao postinho de saúde, gatos enrouquecidos pulam de telhado em telhado, de muro em muro, provocando os humanos com seus acordes dissonantes. São miados que parecem notas desafinadas de velhos violões abandonados. Perto dali, um menino com um estilingue faz pontaria. Uma pedrada certeira e o corpo flexível do gato despenca de cima da casa de alvenaria para um canto de muro qualquer. Antes de morrer, solta miados estridentes e lamentosos que, pouco a pouco, vão se transformando em suspiros entrecortados de agonia.
Na casa vizinha um homem e um rapaz chapiscam a parede dos fundos da residência. Vez em quando descansam, enquanto ouvem música e tomam tereré recostados em suas pás. A seguir enchem a carriola de massa e, fazendo bom uso de suas colheres de pedreiro, começam a distribuir colheradas de concreto ao longo da parede. As sobras de concreto, restos de tijolos e pedaços de sacos de cimento são, displicentemente, arremessados do outro lado do muro. Caem em cima do corpo morto do gato. No quintal vizinho, duas crianças observam de cima de seus caixotes de supermercado.
Quando os homens terminam o serviço, ouvem ao longe os miados enamorados de outros gatos duas quadras adiante. Depois de virarem suas garrafas de água garganta abaixo se entreolham e comentam de forma despretensiosa:
-Esses filhos da puta não me deixam dormir de noite.
-Já nem ligo para o barulho deles, tenho é inveja.
-Tem inveja de um gato?
-Minha mulher não grita que nem eles, na hora que tá fudendo.
Depois que os homens guardam suas ferramentas e dão partida no Fiat 147, um menino e uma menina abrem um velho portão de madeira e adentram no terreno baldio abandonado. Andam rápido, desviando dos montes de lixo, das plantas espinhosas e dos cacos de vidro. No canto do muro avistam o monte de entulho. Com uma viga de madeira conseguem afastar os sacos vazios de cimento e as sobras de construção.
Assim que avistam o cadáver, caem de joelhos, com as mãos nos olhos. Na garganta, um nó que prenuncia o choro sentido. Pegaram o gato e levaram-no como quem leva um amigo acidentado. Duas mãozinhas seguravam a cabeça ferida do animal enquanto as outras duas agarravam o corpo já endurecido.
Ficaram em silêncio no fundo do quintal aguardando o irmão mais velho. A menina limpava as lágrimas na manga da blusa. O menino não chorava, mas trazia o semblante carregado com uma expressão de medo. O que diria seu irmão quando chegasse? O gato era dele. Tinha dito ao menino que cuidasse do bichano enquanto ele estivesse na correria da rua. Será que ia apanhar? Será que ele ia contar para a mãe quem era o culpado por deixar o gato sair de casa?
Pensava nisso, quando o irmão mais velho chegou empurrando o portão com força e jogando a bicicleta sobre o canteiro de flores. Empurrou a porta da frente e entrou em casa. Deitou no sofá de onde podia ver o quintal ao longe. Viu os irmãos, fez questão de se levantar, mas sentiu uma preguiça imensa. Ainda os viu cochichar antes de cair em um sono profundo.
Com as pernas para fora do sofá e metade do corpo recostado, dormia a sono solto. A menina e o menino se aproximaram, olhando para o rosto feliz do irmão, imaginaram que ele estava feliz. Desandaram a falar, os dois ao mesmo tempo, explicando que o gato havia saído para namorar e foi encontrado morto. Disseram que não sabia quem o matou, mas que iam descobrir assim que pudessem. O irmão se virou no sofá, deu um largo sorriso para os dois e voltou para o país dos sonhos. A menina e o menino acharam que o irmão tinha entendido.
Acordou meia hora depois. Ainda sob o efeito da droga, correu para a geladeira e tomou de uma só vez meia jarra de suco de limão. Deu um arroto sonoro e dirigiu-se para a sombra do pé de laranja nos fundos da casa. Seus olhos ardiam, sua boca estava seca, mas seu corpo tinha uma leveza de bola de vôlei. Ficou cutucando o nariz, coçando o saco e se espreguiçando enquanto tentava entender porque os irmãos cavavam um buraco no quintal de terra batida. A mãe tinha sido clara: ele era o responsável pela casa e pelos irmãos, qualquer coisa que acontecesse a eles, ela conversaria com ele assim que chegasse do serviço.
Na última conversa que a mãe teve com ele, alguns vizinhos tiveram que intervir. Todavia, a mãe tinha sido alertada pelo Conselho da infância a respeito de como se deve educar um filho; ele tinha sido alertado pelo mesmo conselho de que não se deve furtar o aparelho celular de nenhuma senhora. Ainda mais quando a senhora é sua própria mãe.
Continuaria perdido em pensamentos se não fosse pela menina que cutucou suas costas e, ainda com a cara amarrotada de tanto chorar, apontou para a triste figura do gato sobre dois tijolos empilhados. Ainda com sono, olhou para o bichano e não o reconheceu. Parecia muito maior e muito mais bonito. Achou que a morte do animal o embelezara um pouco mais.
Olhou para o irmãozinho e ele abaixou a cabeça. Tremia de medo do que o irmão mais velho pudesse fazer. Continuaria tremendo se não fosse pela inusitada atitude do irmão e pelos olhos do mesmo que pareciam dizer que ele não tivera culpa alguma. Não tem culpa não, piqueno, disse. A culpa é desse gato malandro e de quem matou ele. Vamos cuidar do enterro do coitado.
O rapaz pegou uma enxada velha e cavou um buraco raso entre o pé de laranja e o muro. Pediu à irmã que conseguisse algumas flores para jogar na sepultura do gato. Depois que colocou-o dentro da cova, mandou ao irmão mais novo que pegasse a vela que a mãe guardava na gaveta para o caso de acabar a luz durante a noite. O menino foi e voltou depressa. Tudo pronto. Perguntou aos irmãos se eles tinham papel e caneta. A menina disse que não. Não, pensou o rapaz, não tem importância. Mal sabia escrever o próprio nome.
Assim que terminou de enterrar o gato, pôs a mão no bolso e acariciou a porçãozinha de maconha. Ainda daria para alguns pegas, pensou ele. Nisso, seus olhos brilharam e brilhariam mais se sua irmãzinha não interrompesse seus pensamentos:
-O que você queria escrever aí pro gato, irmão?
-Deixa pra lá, você não vai intender mesmo, né?
-O qui eu num vô intendê, irmão?
-Qui eu ia iscrevê qui ele morreu por amor!
Ao longe, o apito da fábrica. No céu, o vermelho do poente que cai sobre a vila se mistura ao cinza da poeira que invade as casas. Durante todo o dia, o pó, o calor e o abandono pairam sobre os moradores. À noite, porém, terão a companhia dos pernilongos...