A fome e a fúria
“Vítor nasceu… no Jardim das Margaridas.
Erva daninha, nunca teve primavera.” Sérgio Vaz
Um porquinho margeava a pista fuçando à procura de algo para comer. Não era magro, mas não se pode dizer que fosse gordo tampouco. Com a cabeça baixa adentrou na rodovia, sempre fuçando e olhando para frente. Soltou um enorme guincho quando a caminhonete, em alta velocidade, arrebentou seu focinho. O corpo dele foi arremessado para a outra margem, dentro de um espesso capinzal. A caminhonete continuou seu trajeto com o para-choque respingado de sangue.
Das casinhas próximas começaram a surgir pessoas. Primeiro, foram as crianças que empinavam pipa no pasto adiante; depois um pescador que retornava para casa, a seguir algumas mulheres com crianças no colo. Em menos de dez minutos havia, pelo menos, quinze pessoas com disposição de esquartejar e repartir o porquinho. Um esperto trouxe uma serra afiada e o leitão foi democraticamente dividido. Dele sobraram apenas os casquinhos que serviriam para juntar a água das abundantes chuvas de verão.
A vila ficava próximo à rodovia. Seus despossuídos moradores viam o progresso que passava diante de seus olhos todos os dias. Caminhões e carretas conduziam a produção rural para bem longe dali. Vez por outra, alguns moradores sondavam a pista. Não era raro encontrar galinhas, pombas e até capivaras atropeladas. Até Coca-Cola já encontraram. Enquanto o motorista tentava sair da cabine e acionar a polícia, meia dúzia de moleques corria no pasto verde com os engradados vermelhos às costas.
As ruas de chão batido estavam escorregadias. Havia mais buracos nas vielas do que nos tetos de brasilit das acanhadas casinholas. Ruas estreitas e mal iluminadas, algumas delas possuem árvores debaixo das quais se quedam quatro ou cinco homens jogando baralho; outros apenas olham e fumam conversando. Em cima dos muros próximos, alguns adolescentes compartilham narguile e fumam seus primeiros cigarros de maconha. Televisões sussurram nas casinhas rústicas, enquanto na residência dos idosos elas berram suas propagandas insidiosas.
Não muito longe dali, três residências vizinhas estão em festa. É hora de assar um quarto do leitãozinho. Surgem algumas latinhas de cerveja, garrafas de vinho pela metade e garrafas de cachaça. Um som toca as músicas do momento enquanto, entre um gole e outro, o cheiro do assado se esparrama no ar. Nesse momento é fácil supor que estão todos felizes, mas entre a suposição e o fato há uma grande distância. Nem todos estão contentes. Alguns, inclusive, estão muito descontentes:
-Onde esses aí conségui dinheiro pra fazê festa todo dia?
-Taí, eu queria saber também! Responde uma senhora com uma bíblia debaixo do braço.
-Se ficar até tarde o barulho, chamo a polícia! Disse um senhor que acabara de chegar do trabalho.
Enquanto isso, o cheiro do assado passeava pelas redondezas provocando fome e fúria. Alguns já saciados e displicentes transitavam pela rua colhendo no corpo o suave vento noturno que iniciava sua ronda pelo bairro. Jovens adolescentes pedalavam em busca de novidades; outros andavam pelos cantos escuros do muro, esperando a hora em que chegariam os traficantes para lhes vender ilusão e prepotência nas trouxinhas de crack e maconha.
A propósito, debaixo da velha mangueira que sombreia a praça da vila, três vultos silenciosos cochicham seus planos. Antes de saírem das sombras ainda têm tempo de sentir o resquício do cheiro do assado que acabou.
-O bagulho tá compreto, Craudim?
-Só du bão, Pé de Pó!
-Aí, muleque, é nóis qui faiz o córri sussegadu!
-Num falei, Bistola? Nóis num arréga cum dinheiro seu, não!
Antes de responder, Bistola liga a moto, coloca o capacete e acelera. Nos seus olhos vermelhos brilha o reflexo da luz do poste da esquina. Com a mão esquerda, puxa o calção para cima enquanto mantém a moto acelerada. Sem olhar para os dois, fala como se falasse para o mundo:
-Deu bom qui cês fechô comigo, si não, vacilo nu ia vê o sol nascê amanhã.
Tragou rapidamente o cigarro e o jogou no chão. Acelerou a moto e a conduziu em um semicírculo. Antes que os outros dois pudessem dizer qualquer coisa receberam nas caras um tufo de sujeira e fumaça. A moto acelerada jogava para trás pedregulhos, capim e merda de cachorro.
O traficante partiu em direção à cidade vizinha. Lá poderia gastar o dinheiro e comprar mais entorpecentes. Também poderia se divertir um pouco nas lanchonetes e bares. Comeria muito bem e só voltaria para recolher as migalhas.
Os dois acocorados ao pé da mangueira ainda ouviram o barulho da moto que cortava a escuridão, antes de serem abordados por policiais que faziam o patrulhamento de rotina. Nessa noite entregaram todo o dinheiro da semana para o Bistola e perderam as poucas paradinhas de droga que traziam no bolso para o consumo próprio. A seguir rumariam para a delegacia. Seriam ouvidos e liberados. Estariam livres para voltar, para voltar estariam livres...