A infância não veste Prada

Eu fico admirado com a maturidade intelectual e emocional de algumas crianças que conheci na vida. E sempre procuro aprender com as histórias que ouço contarem delas. Essa semana foi a vez de Lavínia, filha de uma grande amiga minha (e das letras e da música e da cultura), que tem apenas dez anos e viveu uma experiência que merece dar as mãos a outras duas que me vieram à memória para brincar com ela de roda enquanto cantam alguma cantiga popular ainda não composta sobre crianças sabidas.

Não acho que certas pérolas, produzidas tão cedo pelo sofrimento de meninas e meninos espertos em seus cotidianos, tenham qualquer coisa a ver com geração x, y, z, índigo, etc., muito embora seja surpreendente observar Lavínia conversar com outra menina de sua idade por uma videochamada de whatsapp sobre a casa que administra no The Sims ou o quanto detesta gente que dá spoiler de filmes enquanto penso como contarei sua história. Acredito que muitas crianças de hoje não tenham as mesmas perspicácias de Lavínia, enquanto outras dos anos noventa ou oitenta talvez brincassem tranquilamente com ela nesta roda narrativa, ainda que não lessem revistas interativas no tablet nem sonhassem em ter um canal no Youtube. Mas, agora que Lavínia encerrou sua chamada (a propósito: a última frase dita para amiguinha foi “eu não sou vidente, sou maravilhosa”) porque daqui a pouco vai encontra-la para passar com ela o fim de semana do feriado da Independência, podemos começar a narrativa.

Três semanas atrás, Lavínia, que gosta de desenhar, juntamente outra colega de classe, que simpatiza com corte e costura, decidiram fazer, juntas, roupinhas para as suas bonecas. O resultado ficou tão bacana, que muitas meninas da mesma turma desejaram ampliar seus guarda-roupas de brinquedo. E foi numa contagem de pique que a ideia de vender os produtos surgiu entre as crianças. Após a deliberação das mães, que concordaram que a atividade poderia ser uma brincadeira profícua, desde que a essência e os valores fossem simbólicos, Lavínia e sua amiga, já no primeiro dia de produção, voltaram para suas casas com um lucro de vinte e dois reais. Lavínia, como precisou ir embora da escola mais cedo, nem se importou em deixar o dinheiro com a coleguinha. Estava mais radiante que qualquer aspirante a estilista que ganhasse o menor sorriso da personagem cinematográfica de Meryl Streep. Mal esperava pela hora de conversar com a amiga pelo celular sobre o sucesso alcançado e sobre as ideias para o futuro. Entretanto, sofreria a seguir algo muito pior do que sofreu qualquer subordinado da malévola Miranda Priestly na trama vestida de prada:

¬- Lavínia, eu mudei de ideia. Posso fazer as roupas sozinha e quero ter o meu próprio negócio. Eu tenho o direito de tomar essa decisão. Não adianta fazer drama. Eu não quero mais nem conversar. Não preciso de você para fazer isso. Não preciso de ninguém para ser feliz. – Foi tudo o que Lavínia, incrédula, recebeu de mensagens naquele fim de tarde. As lágrimas rolavam silenciosas tanto em seu rosto quanto nos rostos dos emojis que enviava como resposta a cada frase chocante recebida da colega. E o silêncio, que nunca foi um traço de sua personalidade, especialmente num dia tão especial, despertou a atenção da mãe, que tomou conhecimento do fato e passou a acompanhar o desenrolar daquele triste bate-papo sem interferir de forma mais que pontual para não tirar o protagonismo das envolvidas, mas despertar a atenção da filha para o que poderia ser um aprendizado.

Faz um ano que já a conheço e sempre ouço falar das peripécias de Lavínia. Achei o máximo esse equilíbrio em orientar, mas não decidir pela filha. Em minha família há duas boas histórias de moldagem de caráter e maturidade emocional que certamente vestiriam bem as reflexões de Lavínia enquanto se preparava para dar a importante resposta.

A primeira história é a de Aline, nova na escola de minha irmã, a série devia ser a sexta em meados dos anos noventa. Não bastasse ter de enfrentar todos os assédios que uma criança com pouco mais de dez anos enfrenta ao chegar em turma nova, Aline trazia consigo aquele estigma ridículo e preconceituoso de vir do Norte do país. A cereja do bolo devorada pelos moleques da classe, não apenas no recreio mas durante toda a manhã daquele primeiro dia de aula, foi a sandalinha da Xuxa que a garotinha estava usando. Em plena sexta série? Um absurdo! As meninas da classe, exceto minha irmã, que depois desse episódio se tornaria sua admiradora e amiga, também riram bastante até depois do sinal.

Creio que todos nós já experimentamos um dia a dor de ser rejeitado pelos pares. Eu mesmo também me mudei com a família de Brasília para uma cidade de mentalidade provinciana com cerca de dez anos - e eu nem vinha do Norte ou Nordeste, mas só pelo fato de ter um sotaque diferente, fui excluído das brincadeiras, apelidado de baianinho-de-meia-tigela e até ameaçado de apanhar. Mas eu não era baiano! Criança é tirana. E o que eu poderia fazer para ser “aceito” nos grupos que encontraria em seguida? Falar como eles, pensar como eles, agir como eles e não dizer absolutamente nada sem ter a menor certeza de que todos pensavam exatamente igual. E Aline,? o que fez Aline? No dia seguinte ao achincalhamento pelo qual passou, Aline entrou em classe outra vez usando a sandalinha da Xuxa. E assim fez a semana inteira até as zoações saírem de moda. E eu, que não tinha apanhado por causa do sotaque, apanho até hoje desse exemplo de personalidade.

Além de Aline, duas meninas se tornaram amigas de minha irmã. Uma delas se chamava Débora e era considerada por todos uma chata inconveniente. A outra, Milena, era, entre todas, a mais próxima dos “padrões” de amiguinha ideal: branquinha, olhos claros, cabelo escorrido... O padrão das demais era a mistura de raças que compõe nossa família e a família brasileira.

À época não havia internet, whatsapp, nem celular existia. Geralmente, era na última folha de caderno que funcionavam os aplicativos de desenho, e as redes sociais quando as crianças rasgavam tiras para enviar bilhetinhos. Não precisava de wi-fi para receber a mensagem e a confirmação era visual. Partiu de Milena em plena aula o recado para a minha irmã:

“Não dá para continuar sua amiga enquanto você andar com essa Débora. Você tem que escolher: ou ela ou eu”.

E mesmo tendo Milena certo prestígio entre os demais na escola, minha irmã enviou a resposta sem precisar pensar muito:

“Fico com quem jamais me faria escolher entre duas amigas”. Ela tinha pouco mais de dez anos e, quando bateu o sinal para o recreio, saiu rapidamente. Estava chateada. Decidiu lanchar sozinha debaixo de uma árvore frondosa de raízes externas que ficava fora do pátio da escola. Pouco tempo depois, Débora apareceu. Estava aos prantos.

- O que houve, Débora? Por que você está assim?

Aos soluços que sempre tiram a fala às crianças, Débora tentou explicar que soubera do bilhete. As lágrimas lavavam a cara, escorriam por debaixo do rosto, pingavam...

- Débora, você entendeu que eu escolhi você? – interrompeu minha irmã preocupada em explanar a situação.

- Entendi sim! Eu estou chorando de emoção. É que nunca ninguém tinha me escolhido.

Eu já fui considerado o acessório chato e inconveniente de algumas turmas em alguns momentos da infância e me lembro de como é difícil ser criança. Felizmente, nunca precisei passar por uma escolha assim tão difícil, duas amizades, com um ultimato, mas sempre que penso nessa história questiono-me retoricamente de quantas déboras chatas eu abri mão só para não perder as milenas.

Sei que ser humano é bicho social, faz clã e criança desentende mesmo: briga, separa, faz paz até com mais facilidade que adulto. Perdoa desavença, esquece. Quanta gente inimiga na infância vira amiga na vida adulta porque a aura daqueles conflitos tinham um perfil pueril: ciúme, necessidade de aceitação, insegurança, baixa autoestima...? Pensando bem, são exatamente essas falhas que afastam também os adultos e com dez anos fica ainda mais difícil ter esse discernimento. Entretanto, minha irmã me ensinou com esse exemplo que quem talvez nunca tenha sido escolhido de verdade seja eu... Os mais profundos exemplos de sabedoria humana são esses, que não apenas nos surpreendem e nos ensinam alguma coisa, como de alguma também nos deixam descontentes conosco mesmos, com nossas atitudes. Como adultos ou como crianças. E com Lavínia, não é diferente:

- Eu entendo você – respondeu após pensar bem. Discordo, mas entendo. E meu choro não é drama não. É decepção. Não é uma questão de dependência, mas de amizade. Para mim, o mais importante era fazer tudo com você. Pra você, é provar que pode fazer.

Lavínia tinha apenas dez anos quando enfrentou sua primeira quebra como microempresária com a traição de sua sócia, mas ensinou uma lição à pior atitude que a coleguinha emulou da vida adulta: o egoísmo. E tudo começou com uma brincadeira de criança. Mas não é assim que começa?