O OGÃ DE XANGÔ*
Aquele corpanzil bem distribuído em 1.85 cms, se contrariava com os balbucios constrangidos de quem a ele se referia: mulato, moreno, crioulo... Ao que interrompia dizendo: Negro, sou Negro ! E mostrava seus dentes perfeitos e alvos em contraste com a tez de ébano. Assim se fazia respeitar, eliminando melindres de terceiros, e sendo chamado pelo nome, Luiz, ou , aos mais próximos, negão. Aqueles instantes de aparente constrangimento se desfazia quando seus olhos denunciavam o menino oculto naquela carcaça. Seu biótipo se encaixava na função, a de ser segurança, ofício que exercia naquele edifício comercial no centro da cidade e nos bicos feitos em diversas outras atividades. Sua paixão, além da família, um filho pequeno e a esposa, era o atabaque e seus orixás da umbanda, que venerava, e era surpreendido a cantarolar suas canções, com ensaios em momentos inapropriados, razão de queixas veladas por alguns preconceituosos melindrados. Atuava em terreiro da religião afro-brasileira em algumas noites da semana, como ogã, aquele que toca o instrumento de percussão, manejando as mãos sobre o couro do tambor invocando as entidades espirituais daquela crença. Em suas apresentações parecia dominado por exótica força fazendo de seu corpo extensão do aparelho que manuseava tirando sonoras batidas. Algumas coisas o marcaram, como o dia da morte do pai, onde não demonstrou sentimentos, apenas confidenciou de que fora de vida errada, dado a vícios, tornando difícil a vida de sua mãe, possivelmente a razão de não ter tais maus hábitos, o de beber e fumar. Triste o percebi por ocasião do falecimento da avó, embora esperado pelo estado de saúde, o marcou muito mais que a ausência paterna.
Embora revelasse amor pela esposa, residia nele o mal da maioria masculina, os olhares maliciosos aos requebros femininos das outras... Porta de prédio, entrada de muitas, o dia preenchido com flertes mal disfarçados, ou mesmo de furtivas e presumíveis aventuras. Sua estampa em uma silhueta bem trabalhada, atlética, praticante e treinador de muay thai, o distinguia perante o sexo oposto. A sua fisionomia alegre, juvenil, dava-lhe um diferencial que não passava despercebido pela mulherada, encantadas por sua destacada figura.
A esposa, bela morena, trabalhadora e apaixonada pelo marido. Às amigas, sempre sofria das brincadeiras feitas sobre o envolvimento do esposo com elas, estava acostumada, sabia serem inverídicas e propositais para encabulá-la; assim, eventuais ligações telefônicas com essa intenção tirava de letra... Exceto as insistentes chamadas que observou no celular esquecido pelo companheiro, desconfiou e resolveu atender. Preocupada ao identificar a voz e a imagem de Ana, ex vizinha do casal, moradora na casa de cômodos ao lado, jovem e sozinha. Aquilo a atormentou, e resolveu manter segredo, precisava de tempo e de pensar com calma, apesar de estar nos seus limites de tolerância. Aquele jeito brincalhão, risonho, também ocultava um sedutor nato, sabia-o bem, afinal, foram atributos para enlaçar também a ela, tempos atrás. Sua figura mudou-lhe a vida, a encantou, foi diferente de todos os relacionamentos anteriores, foi especial, eram felizes. Porém conviver com as suspeitas era o desafio maior para Grazy, como Ana tinha o número do telefone dele ? E como o tratava com tanta intimidade, cobrando o seu comparecimento, em tom insinuado de ameaça? Resolveu tirar a limpo a história, por mais cruel que lhe pudesse ser... Teve a intuição de procurá-la em uma favela próxima, pois havia se mudado, embora não soubesse como localizá-la. Saiu com o carro do marido, que tinha insulfilme nos vidros e não permitia uma visão clara de quem estava no interior do veículo. Bastou achegar-se das proximidades da comunidade, que Ana, pensando tratar-se do amante, apareceu junto ao carro... Não havia mais dúvidas, tinham um caso. Apenas um inconveniente deteve a fúria da esposa contra a outra, a já visível barriga denunciando a gravidez. O lado maternal falou mais alto, impedindo-a de atos e atitudes ríspidas, a ouviu consternada...
Maculada em sua confiança, sentiu-se despedaçada em seu interior; como resolver aquela situação inusitada ? Apartar-se do pai de seu filho, e de seu homem ? A memória rebobinada em tortuosas dúvidas, como imaginar seu pequeno distante do pai tão querido ? Privá-lo da convivência em que ambos pareciam crianças em suas alegres brincadeiras ? E ela, divorciada do amor de sua vida ? Como restaurar os cacos da relação profundamente abalada? Não fora um caso eventual, que poderia desconfiar mas jamais ter a certeza; havia uma gestação, um braço de outra família clandestina sendo gerado, como suportar aquilo? Sem conseguir digerir todo o fel que a consumia, entregou-se ao trabalho e, intencionalmente, a criar programas sozinha, desligando-se do esposo...Queria feri-lo, tentar atingi-lo com as mesmas armas. Que sofresse suas ausências injustificadas, e sentisse o receio de perdê-la, se realmente a amava como dizia. Incomodado e estranhando o comportamento alheio e distante da esposa, a questionou e teve a resposta a eclodir como lavas de um vulcão. Não conseguiu conter sua insatisfação e vomitou – lhe suas angústias e descobertas, fazendo-o partícipe de suas decepções... Em suas mãos a responsabilidade de sua inconsequente aventura.
Não quis participar das decisões que caberiam a ele. Que contornasse a situação, dando dinheiro para a amante retornar à sua pequena cidade no interior baiano de onde viera, não se sabe se livraria da barriga, ou se levaria no ventre a semente da trânsfuga relação com ele. Conhecendo-o como sabia ser, não concordaria com o aborto, mas sobre isso se eximia, era demais para ela sobrecarregar-se com o resultado da traição sofrida, não lhe pertencia aquele encargo, que se resolvessem eles.
Para a esposa, contudo, apesar de amainada as turbulências domésticas, seu olhar triste denuncia a sombra a persegui-la e a inquietá-la... Nada mais será como antes ? Tinha claro de que em cada esquina poderia surgir outra adversária a ser fisgada pela facerice sedutora de seu amado... O tempo dirá; se depender das molecagens do marido, altissonantes como o soar dos atabaques no solo do terreiro de pai Xangô saudando os Orixás, ninguém poderá asseverar com certeza...
* PUBLICADO EM LIVRO NA ANTOLOGIA PAINEL DE CONTOS PREMIADOS, EDITORA CBJE - RIO DE JANEIRO-RJ, 0UTUBR0/2017