O BENEFÍCIO DA DÚVIDA

O cão te dá o benefício da dúvida.

De duvidar de si, de seus atos.

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Vejamos...

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Você está no trânsito e é fechado por um ônibus, involuntariamente.

Desce do seu carro vociferando, se lembra da arma

que está no porta-luvas, volta e a apanha,

engatilha e, sem mirar, atira.

O motorista do ônibus se abaixa para apanhar

um pedaço de papel que caiu do bolso, se desvia, por pouco.

A polícia faz a ocorrência, todos vão responder em liberdade,

você volta para casa, guarda o carro na garagem

e o cão te recebe com alegria.

Para ele você é o melhor dos homens, lambe a sua mão,

a mesma que atirou sem saber o destino da bala.

O cão não tem dúvida.

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Você experimenta o açaí que pediu no balcão. Detesta.

Acha que está rançoso.

Chama o atendente e sem mais e nem menos o atinge com um soco,

jogando-o contra o freezer ao fundo.

Irritado, se levanta e grita que não joga dinheiro fora,

o gerente se aproxima, receoso, pede para que se acalme,

um senhor se levanta e diz que é policial, chama a polícia,

que faz a ocorrência, você vai responder em liberdade,

volta para sua casa, guarda o carro na garagem

e o cão te recebe com alegria.

Para ele você é o melhor dos homens, lambe a sua mão,

a mesma que socou o rapaz sem saber bem o que fazia.

O cão não tem dúvida.

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Você vai ao restaurante numa noite de sexta-feira, junto com a esposa,

se sentam ao fundo, pedem a carta de vinhos, escolhem, brindam, riem,

conversam sobre os filhos, a escola, as contas e, de repente, percebe

um homem, à sua esquerda, que vez ou outra olha para a sua esposa.

Irritado, finge que tudo continua bem, mas se lembra que quando garoto foi traído pela primeira namorada, que encontrou

um rapaz mais bonito.

Olha para a esposa e a atinge com um tapa no rosto, violento,

e grita que ela o trai.

A esposa, perplexa, começa a chorar, limpa o batom,

sente a vermelhidão, se levanta e vai ao banheiro.

O homem que a observava se aproxima e, receoso, diz que estava tentando reconhecê-la, é um primo distante que veio

para a cidade para uma reunião LGBT que aconteceria daí a alguns dias.

Você, envergonhado, paga a conta, observado por todos,

chega ao carro e sua esposa lá está, ofendida, triste, magoada.

Chegam em casa, a esposa se tranca no banheiro,

não quer falar mais nada.

Você caminha pela sala e o cão te recebe com alegria.

Para ele você é o melhor dos homens, lambe a sua mão, a mesma

que esbofeteou a esposa no restaurante. O cão não tem dúvida.

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Você não teve um bom dia no trabalho.

Como chefe, para dar o exemplo, deveria ter chamado seu subordinado

em sua sala, conversado com ele sobre aqueles papéis que deveriam

estar em sua mesa, explicado a urgência mas o repreendeu aos gritos,

chamou-o de incompetente, relapso, e outras coisas deveras pesadas.

Não o atacou fisicamente, mas nem era preciso.

Todos à sua volta se fecharam e o ambiente, que era pesado,

se tornou extremamente carregado de estranhas energias,

o que possibilita atos impensados, uns contra os outros,

belicosos, mortais.

Veste o paletó, desce ao térreo, pensa em ir a algum lugar

beber algo, se lembra que amanhã tem a audiência com o motorista

que quase matou, depois de amanhã deverá responder pelo soco

no atendente, todos os dias deverá repensar que tomou

uma atitude violenta contra a esposa, muda de rumo e

volta para casa um tanto quanto desgovernado, pensando

no que disse um dos poucos amigos, deveria fazer análise,

o que você acha uma bobagem, prefere continuar o mesmo,

o mesmo de sempre.

Chega em casa, guarda o carro na garagem, abre a porta da sala

e o cão vem lhe lamber a mão, chuta o cachorro que sai ganindo,

ele volta, chuta novamente, joga o paletó no sofá, bebe um whisky, bufa, sua mulher está na casa da mãe, seus filhos foram com ela,

está só.

O cão, receoso, volta mais uma vez e é chutado de novo.

Para ele você não é o melhor dos homens, já não lambe a sua mão,

a mesma de tantos atos nocivos, que o levaram à extrema solidão.

Ele está cheio de dúvidas.