Conto das terças-feiras - Um carro só meu
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, CE, 5 de setembro de 2017
Ano 1967, local, zona cacaueira do Sul da Bahia. Recém-chegado, morando em república com mais oito colegas de instituição ligada ao Ministério da Agricultura, responsável pela política cacaueira do Brasil, onde se pesquisava sobre solo, fisiologia vegetal, entomologia, fitopatologia, genética e outras áreas do conhecimento, sempre ligadas ao cacau e ao cacaueiro. Todos, ainda quase imberbes, o primeiro emprego, o bom salário e carro na garagem, despertavam os sentimentos casadoiros das jovens locais de olho nos novos imigrantes.
Com parte do primeiro salário paguei a entrada daquele que seria o meu primeiro carro. Um fusquinha verde abacate, ano 1963, motor 1200cc, seis volts, faróis com luminosidade mais fraca que as lanternas de mão de hoje. Corria um pouco mais depressa que uma tartaruga. Não me lembro o quanto paguei por ele, que foi adquirido de um colega de república e o pagamento foi realizado em módicas prestações mensais sem juros – coisa de colega – durante três anos.
Naquela época, as cidades do interior da Bahia que não tinham carnaval realizavam suas micaretas, festa carnavalesca depois da quaresma. Era carnaval reinando pela redondeza até próximo aos festejos juninos. Período de brigas intensas entre namorados, as fugas para essas festas as deixavam furiosas. Certa vez, chegando à casa de minha namorada, encontrei-a mal-humorada. Perguntei o que se passava e ela me informou que soube que eu tivera ido à micareta da cidade vizinha. Até me viram por lá. Depois do desmentido – eu não fora, realmente – fizemos as pazes. O problema! Eu havia combinado com duas garotas para irmos aquela noite. A consciência doeu, rezei para que as meninas desistissem da festa.
Qual nada! Chegando à casa delas, encontrei-as fantasiadas de dançarinas do ventre. Chegaram a mim rebolando os quadris, tal e qual dançarinas de verdade. Não tive dúvida, mandei-as entrar no fusquinha verde, 1963, seis volts e partimos. Seja o que Deus quiser, pensei.
A cidade para qual íamos era separada de nossa cidade por uma estrada estreita, escura e sem sinalização. De um lado e de outro o terreno era mais alto que a pista, plantação de cacaueiros e plantas para a cobertura destes adensava o terreno e escurecia mais ainda a estrada. Meu fusquinha, 63, seis volts, não iluminava além de cinco metros, as garotas dançando no interior do veículo, cantando alto músicas de carnaval, tiravam-me a atenção. De repente um forte estouro, algo caíra sobre o fusquinha que estancou, as luzes se apagaram e tudo virou breu. A garota ao meu lado gritava e dizia estar ferida, havia sangue. A outra garota, sentada no banco de atrás também gritava — minha cabeça dói! Confusão total. Eu tentava me controlar e procurava entender o que acontecera. Mais calmo, desci. Um jegue – jumento (Equus asinus) saltara do barranco sobre o capô do fusquinha e estava estendido na estrada. Verifiquei o estado do meu primeiro carro, fusquinha verde ano 63, avaria apenas no capô e no para-lama esquerdo, tive de puxá-lo porque prendia o pneu. Voltei ao volante do meu fusquinha, liguei a chave e ele funcionou. Retornamos, deixei as garotas no hospital, elas eram enfermeiras e lá trabalhavam.
No outro dia, junto com um dos colegas de república, fui deixar o meu 63 na oficina. Depois, buscar a minha namorada para levá-la ao trabalho. Vendo que não era o meu carro, ela perguntou por ele. Eu respondi que havia levado para a oficina para alguns consertos. Nada mais ela questionou, pois eu já havia avisado que isso iria acontecer. Só omiti a causa. Saído da oficina, depois de 50 dias, resolvi vendê-lo e comprar outro fusquinha, ano 1968. Uma semana antes do nosso casamento, ela veio a saber do ocorrido com o fusquinha e com as duas enfermeiras. A namorada de um colega, que sabia do acontecido com o carrinho abriu o bico. Até hoje ela diz que eu “menti”, eu respondo que apenas “omiti”, pois ela nunca havia perguntado o que acontecera naquela noite.