E velinhas

Mês passado, eu assinei a adesão ao programa de demissão voluntária da repartição. Mas hoje é o último dia para desistir. E hoje to fazendo trinta e oito anos de serviço. Caramba! Releio as letras miúdas do formulário da desistência. Aderi junto com os colegas, mas deixei a decisão mesmo para depois. Fui postergando a cada dia, mas agora já não dá mais pra fugir. Uma parte do pessoal que "já está na minha idade" continua tão empolgada quanto estava no início dessa perspectiva de aposentadoria. Mas uns quantos não quiseram aderir, preferem continuar trabalhando. Difícil decidir em que time eu estou.

A dona Madalena do café traz a térmica. Bah, esse cafezinho é muito este lugar. Ah, o aroma... Nossa! Já me vem a lembrança de quando comecei aqui. Era o fim dos anos setenta. Prestei o concurso... Terminei a seleção naquele pavoroso octogésimo oitavo lugar. Perdi todas as esperanças, eram só trinta vagas. Nunca iriam me chamar, eu tinha mais era que continuar estudando para outros concursos. Foi mesmo surpreendente quando chegou o telegrama avisando da convocação. Isso foi, sei lá, uns quatro anos depois, já na finaleira dos chamamentos, quase passando a validade do edital. Bah, que sorte.

E que sorte um serviço como este. Nunca atrasou um pagamento, nunca faltou o cafezinho. E até não dá pra reclamar do salário, não tenho do que me queixar. Fiz um bom pé-de-meia nesses anos todos. E tem internet de graça o dia todo, trabalho de escritório é bom, hehehe. O drama é a bagunça administrativa, a burocracia, a ineficiência. Mas, que droga, serviço público em todo lugar é assim, a gente acostuma. Me surpreendem as iniciativas de umas chefias aí, de reformular tudo, implantar sistemas novos. Já tentaram isso há anos, e nunca deu em nada. Só o que prestou foi a informatização mesmo, mas já faz mais de vinte anos. Depois disso, foi só blablablá de consultorias e nada de bom para o trabalho. Se, pelo menos, conseguissem fazer isso funcionar, ia ser mais tranquilo deixar o trabalho para os mais novos. Tem uns até que são muito bons, dedicados, a Mari, o Severo, até o Ernesto. Esses assumem o serviço, buscam, vão atrás, dão jeito de resolver o que aparece. Mas tem outros, o Lotário, o Armando, a Magda, que... bah!, são muito ruins. Não me passam confiança nenhuma, são capazes de demolir o que ainda não tá sucateado.

A turma que quer se aposentar diz que há anos já vem planejando. A Ana só quer saber de cuidar do neto. - Bom pra ela. Se eu tivesse netos... Ou se os filhos morassem perto... - O Ulisses diz que vai passar o resto da vida viajando. - Nem tenho ambição de conhecer lugar nenhum, odeio avião. - Também tem a Daisy que quer se dedicar à jardinagem. - Não sei, nunca tentei, podia ver como é. - A Benta promete voltar a participar na igreja dela. - Detesto essas coisas de igreja. - E o Hilário, esse diz que quer gastar com bobagens tudo que restar de dinheiro e saúde. - Tem isso, né? Se for pra eu sair da repartição, era bom que eu fosse caminhando, e não de maca para um hospital, tendo um piripaque e morrer trabalhando. Bah, a tragédia mesmo é perder o plano de saúde. Quando a gente envelhece, que vai dando oficina, e mais precisa, esses planos safados ficam cada vez mais caros.

As letrinhas do formulário parecem se embaralhar na minha frente. Vou ou fico? - Eu poderia me dedicar a um hobby, era só descobrir um pra mim. - Se eu ficar mais uns meses, até outubro, pego um aumentinho referente ao dissídio. - Eu poderia cuidar de mim, melhorar a forma física, fazer algum esporte de terceira idade, teria que aprender algum. - Se eu ficar até janeiro, pego mais um adicional por desempenho, se a avaliação for boa. - Eu poderia arrumar todas as minhas gavetas, as tralhas da garagem, revisar o guarda-roupas, ler todos os livros da estante. - Se eu ficar até maio, pego mais uma licença-prêmio. - Poderia ver um monte de filmes, até fazer as tais maratonas de séries de tevê que a gurizada fala, deve ter coisa boa. - Se eu ficar até agosto do ano que vem, consigo mais um triênio. - Eu poderia...

Mas a senhora do café está me cutucando, acho que me distraí.

- O pessoal tá lhe chamando na sala de reuniões.

- Ah, ta, já vou, agradeço, desculpe.

Na sala de reuniões, vejo todo o pessoal do departamento. A maioria são jovens, mas quase um terço já tem cabelo grisalho que nem eu, e esses já aderiram. Uns e outros sempre foram tão unidos, até surpreende os outros setores que por qualquer coisa fazem festinhas, confraternizações, por aqui. E pelo jeito, hoje de novo. Ali na mesa apareceu um bolinho. Tem o meu nome e os "38" escritos em glacê. E velinhas! Bah, se tem um motivo que me faria continuar por aqui é essa turma. Vou ou fico?

Aline Vieira Malanovicz - 30/08/2017