Tropeçava nos livros, desastrado

“Escrever foi a mais agoniante de todas as lutas que enfrentei.”

Rubem Fonseca

Depois que acendeu o fósforo na sola do sapato, folheou aleatoriamente uma revista de faroeste. Imaginava como poderia escrever um enredo tão aventureiro quanto os enredos das histórias em quadrinhos. Chegou à janela e acendeu o cigarro.

A seguir, abriu uma garrafa do vinho argentino e, com a ponta do indicador, passava levemente as páginas do Finnegans Wake, tentando compreender como foi possível construir uma forma inovadora na arte da escrita como aquela construída por James Joyce.

Por fim, parou com o cigarro nos lábios e o copo na mão em frente a uma pilha de jornais. Nesse momento, e tristemente, pensava que talvez fosse melhor se tornar um crítico literário já que lhe sobravam ideias e lhe faltava talento e disciplina. Foi tirado de seus devaneios por um barulho de jovens que passavam na rua.

Ficou perambulando pelo quarto e o cigarro quase lhe queimou a boca; cuspiu-o sobre a pilha de jornais e, antes que o fogo pudesse lamber aquele monte de mentiras, derramou o que restava da garrafa sobre o princípio de chama. Nesse momento percebeu que fumava mais que Jorge Amado, bebia tanto quanto Hemingway e escrevia menos que um colegial tímido.

Deitou-se sobre a escrivaninha, deixou pender os braços; respirava profunda e pesadamente ao mesmo tempo em que olhava para o velho fogão. Até um pseudo-intelectual precisa se alimentar de vez em quando, pensou. Deslizou da escrivaninha e foi até a cômoda. Viu que os mantimentos estavam acabando. Aceitou que era hora de vender alguns livros no sebo virtual.

Com o estômago cheio de bolacha água e sal retirou-se do quarto para caminhar; flanar, como diriam os antigos poetas parisienses. Tirou o boné, bagunçou bem o cabelo, pôs óculos aro redondo e sobraçou um exemplar d’O Ser e o Nada. Andou boa parte do dia sem que encontrasse alguém que lhe perguntasse se já tinha lido aquele livro. Naquele momento e sob aquelas circunstâncias adoraria mentir.

Depois de sentar-se em praticamente todos os bancos de, pelo menos, duas praças resolveu que era hora de deixar falar os instintos pubescentes. Faria como seu pai e seu avô antes dele. Iria ao bordel. Lá, certamente não questionariam os seus talentos literários e nem estavam preocupados com os problemas da sociedade.

A casa do prazer era vizinha da mansão do saber. Apenas duas quadras separavam a zona da universidade. Acreditava que alguns colegas poderiam estar lá. Sabia também que alguns deles haviam feito do lugar um laboratório experimental, mas descobriram tardiamente que o Marquês de Sade era uma bela fantasia. Ninguém consegue copular o dia todo sem se alimentar. Não há cantina nos contos do Marquês, assim como não havia refeitório no prostíbulo.

No quartinho iluminado tinha uma cama, um banheiro úmido e um guarda-roupa. No criado-mudo uma pilha de revistas encimada por exemplares descurados de Agatha Christie. Ficou curioso. Por que as letras não o deixavam em paz? Por que tinham que persegui-lo? Por que mesmo ali, a garota cheirosa e servil queria conversar ao invés do de hábito?

-Gostou desses livros? Pode levar pra você!

-Se eu te disser que sou escritor?

-Aí eu te digo que não finjo o orgasmo.

Pagou e saiu apressadamente. Não ficou desnorteado com a resposta. Apenas cogitou que poderia simular que era escritor. Afinal, percebeu que aparentar ser certas coisas poderia ser um prazer também. Antes de voltar ao seu cubículo passou pela casa da mãe-mecenas.

-Filho, já comeu algo hoje além dos livros?

-Sim, mãe!

-Precisa de alguma coisa além de dinheiro?

-Preciso de talento.

A mãe balançou a cabeça e saiu apressada. Voltou com uma marmita e duas maçãs na mão. Não disse palavra. Apenas abraçou-o e soprou a sua mecha que cobria os olhos. Em troca, recebeu um olhar premeditado de alegria.

Lá fora, enquanto caminhava devagar e cabisbaixo, ponderou que tinha de arranjar um emprego. Não poderia mais explorá-la. Em seguida, lembrou que havia esquecido o velho Sartre no puteiro....

make
Enviado por make em 29/08/2017
Reeditado em 05/10/2017
Código do texto: T6098997
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