As mulheres tem dessas coisas
Era uma joia mais falsa do que discurso de político, mas a mulher ficara radiante, colocou o vestido modesto, também presente seu por ocasião do casamento da irmã da mulher com um sujeito lá da cidade tido como grã-fino, apanhou num coque gracioso os cabelos negros e sedosos mantidos assim por uma atuação gratuita da natureza, uma vez que ela só conhecia de nome o tal salão de beleza. Também ela nem precisava desses artifícios. Tinha uma beleza natural, pura, original, genuína. Era alta, de boas carnes distribuídas pelo corpo com justiça e alguma malícia por algum ajudante libidinoso do autor da criação. Mas o que mais impressionava na mulher era o brilho do olhar, coadjuvante da boca rasgada, de dentes alvos e alinhados, na constância daquele sorriso.
A intimidade tem o péssimo costume de destruir o respeito entre os viventes. Acompanhava naturalmente a vida de outros casais da comunidade e percebia o quanto se agrediam mutuamente, achava esquisito quando um companheiro desmerecia a pessoa da própria mulher, que geralmente fritava os seus torresmos e preparava sua marmita, deitava-se com ele e paria seus filhos. Achava aquilo uma traição maior do que deitar-se com outra, o que também não é nada bonito, convenhamos. Mas cuspir no prato em que se come é mais coisa de cachorro que come o próprio vômito. Achou a comparação horrível, mas era como via um homem falar mal da própria mulher. Também tinham as mulheres que aproveitavam a presença de outros casais para desfazer do marido, normalmente elas eram mais honestas porque soltavam os porcos na roça na presença de todos e ali nas fuças do fulano que, por sua vez fingia estar levando a coisa na esportiva. Ficava só imaginando quando voltavam à intimidade, ali debaixo do mesmo teto, dividindo as mesmas misérias. Aliás, irmã miséria humana, que iguala a todos sem distinção.
Com eles era diferente. Ele gostava de presenteá-la frequentemente, embora fossem coisinhas simbólicas, como aquela bijuteria comprada na feira. Quando na roda de amigos ele só tinha palavras de elogio a ela, e quando diante de outros casais, atitudes amáveis. Na intimidade ele fazia jus ao que manifestava em público. Agora por exemplo estava ajoelhado a seus pés prendendo as correias de suas sandálias, que só por dengo ela pediu que ele afivelasse. Quando ia até a cidade, para qualquer necessidade, passava no Sebo e trazia-lhe alguns volumes da literatura de sua preferência, que o alfarrabista chamava de romances macarrônicos. Eram livros bonitos, de capas coloridas sempre com a imagem de um casal num momento de intimidade. Ela se enchafurdava nessas leituras por horas a fio. Ele aproveitava a distração da mulher para sentar-se na varanda e aprender na viola, aquela moda nova para se exibir num qualquer desses domingos lá na bodega.
Ele também estava bonito. Havia tirado as roupas de trabalho, areado o cascão dos pés agora metidos no sapato preto engraxado, o mesmo que usara para se casar havia oito anos. Concordara até em tirar o chapéu. Era esquisito andar sem chapéu. Sentia-se meio que pelado, mas se fosse para ela estar feliz que assim fosse. Ela fez questão de pentear-lhe os cabelos rebeldes amaciando-os um pouco com uma pasta muito das cheirosas, que ele nem imaginava de onde ela havia tirado. As mulheres tem mesmo dessas coisas.