Chip roubado

Eram 23:40 de uma segunda feira, Antonio sobe como de costume em um ônibus, por sinal o ultimo daquela noite. Não troca sorrisos com o motorista, não cumprimenta o cobrador, não senta ao lado de ninguém, afinal nesse horário em São Paulo afetos são raros, nesse horário em São Paulo não há esforço para relações entre os homens; E quantos homens Antonio viu naquele mesmo ônibus, os mesmos que sempre via, e cada um com uma história e também estória, cada homem possuía um cansaço, e esse cansaço tinha o nome estampado no uniforme da empresa em que trabalhavam, e no uniforme do Antonio estava escrito, LOGFLASH – Esse era o nome de seu cansaço, sua falta de energia tinha nome e função, Antonio descarregava e carregava caminhões gigantescos, segundo a assistente de RH seu perfil era o essencial para a vaga, robusto, de cor negra, 27 anos, e ensino médio completo.

É assim que Antonio entra no ônibus carregando em seu crachá que se esquecera de tirar de seu uniforme, lá estava seu registro, e sua “identidade” profissional. Como de costume, o trajeto em sua casa demoraria um pouco, e Antonio tinha oportunidade para cochilar, embora ele pouco cochilava, pois não conseguia dormir dentro do ônibus. Nesse dia Antonio decidiu não cochilar nem um pouco. E olhando pela janela observou dois jovens com mochilas nas costas, no imaginário de Antonio, eles voltavam de algum curso, ou universidade, na verdade para ele isso pouco importava porque Antonio se lembrou que um dia ele também voltava da escola a noite, também tinha amigos que até dado momento eram inseparáveis que na velocidade de um pavio de bomba aceso foram separados.

Sobraram os rostos nas lembranças dele, e por incrível que pareça, alguns contatos salvos no chip de seu celular. Um barulho forte o causou incomodo e pela janela observou a forte chuva, ao olhar continuar admirando a chuva e refletindo sobre os tempos de escola não percebeu quando um homem se pôs de pé, foi preciso Antonio ouvir o que aquele homem até então desconhecido tinha para dizer; “Um assalto” Antonio enrijeceu os seus músculos, ficando inerte e impossibilitado de reagir, quando ao fitar os olhos no assaltante, inconscientemente Antonio retira o seu celular do bolso e entrega ao homem que carregava uma pistola calibre 38 em suas mãos. O homem desce do ônibus apontando a arma para dentro dele, garantindo que nenhum passageiro reagiria ao assalto, já eram 00:15 e Antonio não queria saber de outra coisa a não ser chegar em casa, desceu dois pontos antes, pois o motorista disse que partiria dali para realizar um boletim de ocorrência.

Chegou a casa e sentou-se em sua cama, atônito com tudo o que aconteceu derramou algumas lagrimas, sozinho em seu “barraco” feito de tijolos e ainda sem reboco ele teve que esquentar a janta e mais uma noite sozinho teria que passar, mas aquela noite não era comum, lembrou de tudo o que fez depois que entrou no ônibus, lembrou-se de não ter cumprimentado o motorista, de se sentar sozinho, dos jovens na rua, da forte chuva, e do rosto daquele homem que por uso da violência tomou o celular dele e de todos que estavam no mesmo ônibus. Com o prato de comida nas mãos e com a televisão desligada, Antonio percebeu que a violência pode nos tirar do convívio de alguém, imaginou se tivesse levado um tiro daquela pistola apontada para ele, segurou o terço que estava pendurado em sua cama, e agradeceu à Deus por não ter morrido.

Contudo ele lembrou que acabou perdendo todos os contatos salvos no chip, então muitas lagrimas e um sentimento de raiva invadiu Antonio que lançou seu prato de comida contra a parede ao pensar que jamais teria contato com seus colegas de escola, aqueles que iam e voltavam pelo mesmo caminho com Antonio. Um tiro machucaria menos do que saber que perdeu os números salvos em seu chip. Antonio dormiu e acordou sabendo que a violência não é um evento inesperado, e sim um fato social bem estruturado. As 05h40 Antonio levantou para trabalhar, sem celular e sem os números de seus amigos, colocou seu uniforme e foi gastar toda sua energia descarregando caminhões.