Descrição de Personagens para a história O Doce de Laranja

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Baixa a cerração do início da manhã. Ela vai tomando conta da ruazinha de calçamento irregular e do pátio da frente da casa. Na varanda, a cadeira de balanço e as velhas poltronas guardam suas almofadas, moldadas ao longo dos anos aos seus ocupantes religiosamente assíduos. As bolsinhas bordadas acomodadas na mesinha de centro guardam os apetrechos do crochê, do tricô e do macramê de seus praticantes. Ali também fica o par de óculos que os três compartilham. Eles vêm chegando, já cedinho da manhã, e ocupando suas cadeiras cativas para apreciar - e depreciar - a vida dos outros passando na calçada em frente.

- Margarida, cadê os óculos?

- Tu perdeu eles de novo, Amaro?

- Tu ta ficando caduco, velho.

- Velha é tu.

- Pergunta pra Margô se ela pegou.

- Não peguei, e não grita, que eu não sou surda.

- Tu não ralha comigo, que eu sou teu irmão.

- Ora, a Marga também é tua irmã e reina contigo toda hora, eu também posso.

- Não to reinando, ele que atravanca a cadeira todo dia no meio da casa.

- Já to aqui no meu canto. Me alcança meu trabalho.

- Toma aqui teus macramê. E os óculos, tava aqui em cima da mesa, velho chato.

- Ah, vai fazer o teu tricô e não me amola.

- O meu é crochê, tu não sabe nada.

- E cadê aquela guria, que ainda não trouxe o mate pra nós?

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Do sótão da casa, fizeram um quartinho. Era pequeno, mas muito confortável. Especialmente boas eram as cobertas de inverno - porque o inverno era frio mesmo - eram macias e muito aconchegantes, daquelas que fazem a gente sonhar com coisas lindas e querer ficar ali numa boa por muuuito tempo. Até ouvir os gritos "Dulcemara, cadê o mate?" todo dia logo antes do sol nascer, verão ou inverno. O quartinho precisava de um isolamento acústico. Mais uma vez ela falava sozinha: "Lá vai a Gata Borralheira dos Pampas". E ia logo se lavar pra começar mais um dia na cozinha. A cozinha era integrada por uma porta ampla com a sala de visitas, e por outra porta ampla com a varanda da frente. Tinha aqueles móveis do tipo colonial, ou suas imitações oferecidas pelas lojas mais baratinhas. Era entulhada de apetrechos do tempo da vovó, ainda utilizados diariamente pelos tios para o preparo das refeições, cada um palpitando na culinária do outro. De todas as tralhas, os dodóis de todos os três eram a chaleira, porque, para eles, "pode faltar comida, mas não pode faltar a água para o mate". E era da sobrinha o compromisso de preparar o mate, todo dia no início da manhã e no fim da tarde, depois da missa. Desta vez, como em várias outras esperançosas e malfadadas vezes, ela prepara o mate e sugere:

- Mas quem sabe vocês iam querer botar um pouquinho de açúcar? Fica tri bom. Vocês vão gostar.

- Já não te falei, guria? Mate com açúcar é coisa de mulherzinha.

- Não amola, velho. Nem eu nem a Margô não gostamos de mate doce.

- Eu não gosto. E tu, Marga?

- Acabei de dizer que não gosto. Tu é surda, velha?

- Dá aqui este mate e para de inventar moda.

- Larga dessas magrinhagem e vai la buscar pão.

- Vai duma vez, guria. A padaria não demora já vai abrir.

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Na rua, a cerração recém começa a se dissipar, e vai surgindo uma ou outra pessoa, um automóvel, uma carroça, uma bicicleta vão passando na rua. Já se consegue ver o prédio da esquina, onde funciona a padaria do bairro, no andar térreo. A fachada do prédio é toda amarelo-clara e mostra imagens gigantes de pães, bolos, cucas, salgadinhos, tortas doces, tortas salgadas, quitutes para lanches... uma perdição! Dentro da padaria, o cheiro de pão e café encanta qualquer um. O calor dos fornos aquece um pouco o ambiente, torna tudo aconchegante, especialmente o espaço com mesinhas onde se pode sentar para tomar um café e saborear as guloseimas. O balcão de produtos exibe uma grande variedade de delícias, todas coloridas, uma mais apetitosa que a outra. Atrás do balcão, a sorridente dona da padaria atende os fregueses. Ela sugere, serve, corta, pesa, conta, embala, entrega e cobra, alegremente. Às vezes até canta.

- Bom dia, dona Graça.

- Bom dia, Dulcemara. O de sempre, três cacetinhos para os três tios tristes?

A Dulcemara apenas sorri. A dona Graça anota a compra no caderninho digital e alcança os pães para a freguesa. A Dulcemara acena para ela e vai para casa.

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No andar de cima do prédio da padaria, moram os donos. É um andar de cima até bem elegante, construído há poucos anos, e desenhado por arquitetos, logo se vê. Da porta no alto da escada, vem saindo um rapaz magrelo e arrumadinho, gel no cabelo, camisa abotoada, anéis, oclinhos. Ele anda na rua e consulta o tablet. Vem na direção da casa.

- Olha ali, Marga, quem é esse menino que vem ali?

Marga baixa os óculos:

- Não é o guri do falecido Salgado?

- Não é o filho da gorda da padaria?

- Acho que é ele mesmo.

- Tá vindo pra cá.

- De certo vem cobrar os boleto.

- Ou vem paquerar a Dulcemara.

- Só se é cego. Ou não tem outra opção.

- Essa guria, nem pra livrar a gente da conta do caderninho.

O guri chega em frente à casa.

- Bom dia, dona Margarida, dona Margô, seu Amaro.

- Bom dia. - Dia. - Dia.

A Dulcemara dá um sorriso largo e acena para ele da janela da cozinha.

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A cerração já saiu, e o sol está forte. Do outro lado da calçada, caminha uma guria magrela. Anda consultando o celular e digitando, ao mesmo tempo em que xinga em voz alta seja quem for que esteja teclando. Equilibra nas mãos também um pacotinho de balas e está comendo uma. Atrai olhares e um ou outro comentário babaca de alguém que cruza perto dela.

- Ta boa essa Zeldinha, hein?

- Qualéquié, guri? Passa fora!

- To falando das tuas balinhas, azedinhas.

- Te some daqui, palhaço. Toma umas balinhas.

Zelda arremessa com força umas daquelas balas duras na cara do engraçadinho. Ele se vira ligeiro e sai correndo a proteger a cabeça contra a artilharia de azedinhas.

Zelda segue caminhando na direção da casa.

- Olha ali, Amaro, quem é a mocinha?

- Ah, essa aí é a amiga da Dulcemara.

- Aquela uma que sempre vem aqui?

- A que dá uns gritos com a guria?

- Ahaha É mesmo. Seguido, elas acabam brigando.

- Como é que pode ser tão magrinha se come aquelas balas todo santo dia?

- É que ela é nova, coisa que tu não é.

- Nem tu, velha sebosa.

- Não amola.

Zelda chega em frente à casa.

- Bom dia, tia, tio, tia.

- Bom dia. - Dia. - Dia.

A Dulcemara sorri amarelo e acena pra ela da janela cozinha.

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O Doce de Laranja

antagonista tia Margarida, tia Margô, tio Amaro

aprendiz Dulcemara

mestra dona Graça

amigo Salgadinho

a(ini)miga Zeldinha

secundários

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Aline Vieira Malanovicz - 27/08/2017