Arroz com feijão [conto]

Rafael estava com um problema com seus pais: eles descobriram que ele fumava maconha. O jovem vacilou com uma ponta no carro, e depois que sua mãe abriu o acendedor de cigarros para plugar o celular, e se deparou com aquele celofane do diabo, o garoto especial já não era tão especial assim. Na verdade era um problema. Aliás, vários problemas. “Quem pois aquela porcaria na boca dele?” “Será que ele está só nisso?” “Onde nós erramos?” Dr. Sampaio e a Sra. Sampaio estavam apavorados. Em estado de choque. A sujeira tinha chegado em casa. Era o primeiro sinal do fim dos tempos.

Estava tudo abalado. Admiração. Confiança. Futuro. Quando eles chegaram em casa, colocaram aquela ponta na mesa da sala e olharam para Rafael, seu pai foi eloquente: “Não me venha com esse papo de é de um amigo.” “Você fumou isso no carro?” Foi o primeiro questionamento da chorosa Sra. Sampaio. Rafael estava sendo crucificado, e assim como Jesus parecia querer aquilo. Ele olhava para uma e para o outro com o desdém com que Pôncio Pilatos lavou as mãos. Como quem não tem nada para dizer.

A postura era ultrajante. Inaceitável. “Também não é nenhuma novidade. Olha só para você.” “Depois que começou a faculdade você virou outra pessoa.” Era uma mistura de negação com raiva. “Você não tem nada para dizer?” Que tinha sido um erro. Que estava arrependido. Que não ia acontecer de novo. Que aquela droga maldita tinha pegado ele num momento de fraqueza e com a ajuda de Deus ele ia se livrar daquele terrível mau. Os dois topavam escutar qualquer coisa que soasse como um mea culpa. Assumir é sempre o primeiro passo.

“Como assim não significa nada?” Significou muita coisa quando Césinha, o primo da Sra. Sampaio, foi preso com dezoito anos fumando maconha na praça. Foram cinco anos de cana. Nunca mais ele se recuperou. Significou muito para o Tio Joe, que começou assim e hoje é viciado em crack. “Que mané planta. Que outros tempos coisa nenhuma.” Vai pra cadeia sim. Não tem essa. É crime. Contra a lei. Vicia. Mata. “A única coisa que mudou aqui é que você está metido com essa merda.” É coisa de vagabundo. Ninguém nunca viu alguém de bem envolvido com isso. Era como se o apresentador no jornal da noite estivesse narrando a verdade mais verdade de todos os tempos.

Estupefata era o verbete que melhor definia a Sra. Sampaio. “Me diz que você não vai fazer mais isso, por favor.” Rafael olhou para o outro lado. O Dr. Sampaio bufou. “Conversa com a gente.” Implorou a mãe. E ele dizia: “Eu não deixo de fazer nada por causa disso.” Era um dos primeiros da XXVIV Turma de Biologia da faculdade, tinha um bom estágio, planos. Isso era só diversão, no fim do dia, como uma cerveja. “Como assim?” Não é simples assim. “Você vai precisar de mais, e mais e mais.” Não dá para controlar. É droga. “Em muitos lugares já é legalizado.” “Mas aqui não.”

Conversa vai, conversa vem. “Meu filho, você não precisa disso.” Agora já parecia possível que o garoto especial fosse um especial com asterisco. “Como eu vou poder ficar tranquilo sabendo que você está por aí com drogas?” O Dr. Sampaio apelava e demonstrava amor ao seu jeito tosco. “Onde você vai para comprar essa porcaria? Olha o tipo de gente que você está se envolvendo.” Se as leis não servem aos interesses da sociedade, ou se as políticas públicas favorecem confrontos sociais, “não são assuntos para serem debatidos em casa”, entre uma família que tenta salvar sua cria. “Isso não é problema seu. Você tem que trabalhar,” finalizou o patriarca.

Minutos de silêncio. Agonia. Choramingos. “Isso é só uma fase” era a frase que piscava em um luminoso de neon que brilhava dentro da cabeça da Sra. Sampaio. “E enquanto você tiver nessa fase vai ter que se virar sozinho” era a reação que parecia óbvia para um pai, segundo as convicções do Dr. Sampaio. “Tudo bem”, era a forma mais rápida que Rafael via de acabar com a contenda.

Uma pulga saltou detrás da orelha da Sra. Sampaio gritando: “ele vai embora de casa, ele vai embora de casa.” Dr. Sampaio não se oporia. “Tome um banho que vou arrumar o jantar”, disse a matriarca na esperança de restaurar a harmonia e a família. Rafael levantou e foi para o quarto. O pai olhou para mãe com cara de preocupação, depois ligou a TV. Ela foi para cozinha preparar o jantar.

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