Conto das terças-feiras - Casa estreita e comprida
Gilberto Carvalho Pereira, Fortaleza, 15 de agosto de 2017
Mesmo aos 73 anos, considero-me com a faculdade de conservar e lembrar estados de consciência passados e quase tudo quanto se ache relacionado a fatos de minha segunda infância e daí em diante.
Lembro-me, perfeitamente, por exemplo, da casa em que vivi dos 4 aos 17 anos. Localizada à Rua Antônio Augusto, no Bairro da Aldeota, em Fortaleza. Era uma casa estreita e comprida, que naquela época eu achava grande e espaçosa. Ela possuía inicialmente três ou quatro quartos, depois foi construído mais um, acima do quarto de minha irmã, aproveitando o pé direito da casa. O acesso a esse quarto era feito por uma escada de madeira, um pouco íngreme, mas subíamos com muita desenvoltura.
Havia ainda uma sala de visita, uma sala de jantar, uma copa, uma cozinha, banheiro e sanitário, em ambientes separados. O último quarto era o da empregada. Ao lado do quarto de minha irmã, localizava-se a área, espaço descoberto para a entrada de luz solar.
Ela fazia parte de um conjunto de cinco casas geminadas, construídas no alinhamento da calçada, com mais ou menos três metros de largura. A rua pavimentada com pedras toscas, pois eram raras as pavimentadas com asfalto. Algumas ainda contavam com paralelepípedos, blocos de pedra hexaedros cujas faces opostas são paralelogramos paralelos. Do outro lado da rua, não havia calçada, duas pequenas casas formavam a paisagem à nossa frente. Era um terreno com largura igual ao conjunto de casas geminadas e o triplo de profundidade. Não havia cerca e qualquer um podia ter acesso às frutas produzidas por elas, desde que os donos do terreno não estivessem por perto. Tínhamos manga coité, caju, goiaba, araçá, sapoti, e outras mais.
Desse lado da rua costumávamos jogar bola, futebol. Às vezes errávamos os chutes e a bola sempre ia em direção à casa de dona Chiquita, do outro lado da rua, quebrando os vidros de sua janela, que permanecia sempre fechada. No início a bondosa senhora tomava susto, com o tempo foi se acostumando. Eu nunca a vi reclamar, ela substituía os vidros quebrados por placas de madeira. Assim, com o passar do tempo a claridade do sol deixou de iluminar a sua sala, local onde ela costurava.
Nós tínhamos um quintal grande, mas não gostávamos de brincar lá, mamãe não permitia que os garotos da vizinhança entrassem em nossa casa. Às vezes brincávamos de bola dentro de casa, na área de luz. O problema era que vez por outra quebrávamos o jarro colocado sobre a mesa do jantar, o vidro da cristaleira e até copos e pratos guardados nela. Nesses dias ficávamos, eu e meus irmãos, a tarde toda de castigo.
Os nossos vizinhos, lado esquerdo e lado direito sempre foram boas pessoas, não tínhamos problemas com eles. Mas o filho do vizinho da casa de dona Chiquita, Zé Papoco, era muito briguento, sempre estava a nos provocar. Éramos, pelos nosso pais, proibidos de brigar na rua, quando Zé Papoco aparecia na calçada, corríamos para casa. Não que tivéssemos medo dele. Ele sabia que se brigássemos iríamos apanhar em casa e então, nos provocava. O apelido vinha da expressão que ele sempre trazia na boca, sempre que algo dava errado – papocou tudo!
Lembro de vários personagens daquele trecho da nossa rua. O padre Dourado, capelão do Exército Brasileiro. Um homem alto, forte, que deslizava sobre a calçada, com sua batina preta, como se estivesse pisando em nuvens. Ele tinha um automóvel pequeno, daqueles conhecidos como baratinha, muito usados durante a Segunda Guerra Mundial, com duas portas, sua cor preta estava sempre reluzente, como se fosse novo. Gostava de andar a pé e, sempre com um sorriso nos lábios, ele passava e a garotada pedia-lhe a bênção, ele colocava a mão na cabeça do pedinte e lhe entregava um santinho.
O seu Zé da Bodega era outra pessoa que todos conheciam. Sua Bodega, armazém de secos e molhados, que vendia do pão ao fumo de rolo, passando por cereais, açúcar, feijão, macarrão etc., ficava em uma esquina e todos da redondeza comprava suas necessidades com o seu Zé, também conhecido por Zé Moco, expressão usada para os portadores de surdez. Algumas pessoas compravam na caderneta, onde ele anotava tudo que era adquirido, com o pagamento sempre efetuado no fim do mês. Havia confiança nessa transação. Fortaleza anda não havia entrado na era dos shopping-centers.
Nossa rua era calma, quase não passava carro e todos se conheciam e procuravam ajudar uns aos outros. Só havia casas, sem os edifícios de hoje, que fazem aumentar a população do local, a insegurança e a indiferença entre seus moradores.
Éramos felizes como crianças, sabíamos disso; sem maldade, ingênuos e colaborativos.