Nadando numa piscina de bolinhas [conto]

Quando entrei na sala estava tudo acontecendo ao mesmo tempo. A Dani e o Rato tavam se pegando no nível novela das 23h num pufe no canto. Não era exatamente o que mais me chamou a atenção numa primeira olhada. O prato com duas giletes e vestígios de um pó branco que repousava em cima no criado mudo perdido no canto do sofá, do lado oposto a eles, brilhava nos meus olhos. “Tem mais daquilo no prato?” A Sheila olhou para mim com um sorrisinho do mal e tirou um pino do meio do peito e chacoalhou. Peguei o prato e ela jogou uma pedrinha branca nele. Triturei e separei em dois tiros. Ela primeiro e depois eu. Raspei todo prato e tirei mais um tirinho. Peguei um copo abandonado do lado do prato com alguma coisa com pinga e estava começando a ficar pronto.

Lá no fundo estava tocando alguma música. Era um batidão com uns riffs de guitarra que não conseguia distinguir muito bem. A Sheila tentava me explicar todos os problemas dela com o pai dela, ou o contrário. “Sei que parece ridículo, mas era importante para mim. Não ia mudar nada, mas era importante para mim.” Não podia fazer muita coisa além de dar um apoio moral. “Família é foda.” E tinha tanta gente rindo em volta, entrando e saindo de todas as portas, que ficar ali escutando lamúrias enquanto o pó atingia violentamente o lóbulo frontal me fazia sentir como se o fim estivesse próximo. “Vamos andar por aí. Quero ver a galera.” Com uma cara de ‘eu tenho pó para a gente cheirar a noite inteira’ ela veio atrás de mim.

Passando pelo corredor vi o Zé, a Mari e o Canário cortando um pedacinho de papel bastante suspeito. “Vai sobrar um quarto, quer?” “Corta em dois que divido com a Sheila.” “Tô de boa.” Dei uma golada no veneninho que tava carregando e passei ele pra frente. Depois coloquei o papelzinho debaixo da língua e fiquei só escutando a conversa para não correr o risco de ver o pedacinho do céu voar da minha boca numa risada inocente. “Gente, é como o Spud diz em Trainspotting 2, primeiro vem a oportunidade, depois a traição.” “Aqui não tem amigo, é tudo colega.” “Também não é assim, mas droga não é pão.” Aquilo tudo me parecia lavagem de roupa suja, e eu nem sabia de quem eram os trapos. Dei um pega no baseado que estava rolando, passei para Sheila, deixei ela lá na discussão e fui para os fundos.

Surgi no quintal e a Paula veio correndo lá detrás gritando meu nome e se jogou em cima de mim. Perdi completamente o referencial e caímos os dois no chão rindo. Ficamos lá rolando e se trombando um no outro. O mundo girava para cá e para lá batendo meu cérebro como um liquidificador. Eu virava a cabeça para a esquerda rapidamente e sentia meu crânio puxando o olho para o lado quando travava o movimento e me virava para o outro lado. Era uma coisa tipo Helter Skelter dos Beatles com Cocaine do Clapton. A hora que levantei percebi que todo mundo ria da gente. A Paula me abraçou e me deu um beijo, mas acho que ela não estava preparada para minha língua. De repente ela se afastou, tossiu duas vezes e começou a vomitar.

Talvez devesse ter feito alguma coisa, ou ter tido uma reação melhor que colocar a mão na cara e sair de perto rindo como se não tivesse sido a boca que eu beijei. Mas talvez fosse uma resposta da minha mente aos ataques de C16H16N2O2, ou a falta de foco da minha visão, mas não pareceu tão nojento quanto uma transcrição pode fazer parecer. Foi mais como se cada momento daquele fosse ser lembrado com glória e nostalgia quando eu fosse velho e pensasse nos bons tempos. Foi fantástico me sentir ali, vivo, vivendo in loco aquela história que eu contaria o resto da vida. A consciência de tudo isso era coisa do pó. Cheirei muito lendo Holden Caulfield tentando racionalizar os momentos simples da vida em cento e vinte e poucas páginas. Por isso que às vezes eu fico assim, pensando que tudo é histórico.

A Sheila apareceu com mais uma rodada de farinha no prato. Não sei mais exatamente o que estava fazendo efeito, mas ao mesmo tempo em que me sentia leve não era fácil para a cabeça carregar o resto do corpo. Tinha um copo na minha mão e não sabia do que se tratava. Dei uma golada e vi que era forte. Foi quando me toquei que estava na cozinha, tentando me escorar na pia enquanto a Nati falava alguma coisa sobre a Bebida Púrpura do Hans-Thomas ser, na verdade, uma espécie de morfina. Aquilo pareceu pesado demais até mesmo para mim, que saí de fininho e tentei me esconder no canto do sofá.

Agora me sentia perto do Perfect Day do Lou Reed. Tudo já era só uma lembrança vazia de tempos que nem existiram. Esse vácuo de sentimento desceu para o meu estômago e começou a assar. Minha boca secou como se eu tivesse mastigado um rodo mop. Estiquei o braço e peguei uma lata de cerveja quente esquecida ao meu alcance. Respirei fundo, dei um gole, fiz um bochecho e deixei a mistura descer. Fui soltando o ar aos poucos para poder controlar qualquer reação adversa que aquela insensatez provocasse. Sobrevivi ao primeiro teste, mas o corpo pedia mais. Alguém sentou do meu lado e começou a bater uns tiros numa capinha de CD. De repente os apetrechos estavam na minha frente com alguém me oferecendo um tubo de caneta sem a carga. Mandei tudo para dentro e senti aquele gosto amargo descendo rasgando a minha garganta e abrindo uma marginal de acesso entre o meu nariz e o pulmão.

Não conseguia mais distinguir se as pessoas falavam comigo ou só entre elas sem nem se darem conta que eu estava ali quase enterrado. Arrisquei mais um gole de cerveja e tentei me levantar do sofá. Fiz tanta força para me manter de pé que me caguei inteiro. Como ninguém falou nada achei que não tinham percebido. Eu era invisível. Mas sentia aquele fiozinho de merda mole escorrendo pela perna e o alívio no estômago que não me deixavam fingir que nada tinha acontecido. Me arrastei até o banheiro, tirei a roupa, deitei pelado no chão e fiquei vendo o teto rodar até tudo parecer que ia acabar bem.

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