Assim ou ...nem tanto. 104
Maria Torresmo
Nasceu vesga e com aquele ar de tonta que ainda mantém. O pai disse, sem pejo nenhum, nunca ter visto uma criança tão feia assim. Peluda, cheia de cabelos que lhe corriam pelos braços, pernas e peito como tivesse sangue de bicho, a bebé era diferente mas gente - a mãe sentia-o - e por isso a levaram à Pia Baptismal para tomar nome e lugar entre os lavados do pecado original. Prantaram-lhe um nome sorteado e a menina acabou por se chamar Filomena, nome logo esquecido por acharem mais próprio apelidá-la de Maria Torresmo. Não ia à Escola e ficava na varanda gradeada que se fechava por um postigo alto. Conversavam tudo na sua frente como se ela não existisse. Casos, problemas, namoros, traições, roubalheiras a Filomena escutava de tudo um pouco e, a seu tempo, começou a ligar os fios da meada mas sem nunca se manifestar falando. Quando já ia nos onze bem medidos, menstruou, endireitou os olhos, perdeu a cerda escura dos braços e deitou corpo. Não sabia ler mas percebia tudo e respondia com gestos, risos ou gritos e ia sobrevivendo à sua solidão. A seguir passou a desejar estar sozinha e trancava-se no quarto. Foi quando a Adosinda, sua mãe, passou a referir as conversas que escutava, cheia de pasmo, com o ouvido colado à madeira da porta. Falavam a irmã do padre, a Zeca Farrusca, a Otília das cabras. Gritava a Mariazinha, perguntavam coisas a Francisca parteira e a velha Mercedes do moinho e a mesma voz respondia, aconselhava, acertada, aos assuntos e enredos. Filomena era agora a sua própria companhia e inventava as conversas e dava solução aos temas. Garante Adosinda que toda aquela gente anda no quarto da filha só não sabe dizer quando e como entram para lá.