O matadouro [conto]
Minha perna estava quebrada. Tinha certeza que estava quebrada. Doía desgraçadamente como dói uma perna quebrada. Mas não arredei o pé. Dei dois tiros, tomei um comprimido de anfetamina com vodka e voltei pronto para continuar até o fim. Faltavam quatro. O filho da puta soltou a carcaça lá de cima do túnel, e a força do peso morto preso no gancho como um rolamento num cabo de aço tosco veio descendo, embalado pela gravidade, na minha direção com a mesma potência de um ônibus voando direto para a mão do recebedor num jogo de baseball. Abri o peito e pow! aquela merda explodiu entre a minha barriga e meu pescoço como um gancho de esquerda do Ali com uma joelhada do Dhalsim, me jogando para trás abraçado com aquela bolsa de carne e sangue sem vida. Respirei fundo e inclinei o peso para frente. Fui me arrastando até o caminhão e soltei toda aquela merda lá dentro. “Já são sete, velho. Mais um e perco a aposta no paralelo.” Aquele corno filho de uma puta tinha algum tipo de prazer asqueroso em ver eu me fudendo. Não era nem de longe maior que o meu de fazer aquele bastardo olhar para o lado com medo quando cruzar comigo na rua. Ter a sensação de que ele se arrepende amargamente de ter me dito qualquer coisa que não tenha sido “obrigado por não me mandar para o inferno, Senhor.”
Minha perna estava quebrada. Tinha certeza que estava quebrada. Doía desgraçadamente como dói uma perna quebrada. Mas não arredei o pé. Dei dois tiros, tomei um comprimido de anfetamina com vodka e voltei pronto para continuar até o fim. Faltavam três. “É sério mesmo?” O cretino de cima do túnel ria, o imbecil do caminhão ria, os retardados que tinham apostado quando eu ia cair riam, só eu não ria. “Vai logo com essa merda, porra.” O gancho veio zunindo pelo cabo e conforme o som aumentava sentia como se um muro tivesse vindo violentamente na minha direção e eu não ia conseguir desviar. De repente ele me atinge no peito violentamente na forma de uma carcaça morta e sem vida. Abracei ela e bambiei para cá, depois para lá. Talvez eu tenha algo quebrado além da perna, ou já tenha cheirado cocaína e tomado anfetamina o suficiente para não sentir mais dor, mas parece meu braço virou ao contrário para segurar o monte de carne. Me curvei um pouco para trás para contrabalancear o peso e depois me lancei para frente. Embalei nas forças de Newton e consegui largar a peça no caminhão.
Minha perna estava quebrada. Tinha certeza que estava quebrada. Doía desgraçadamente como dói uma perna quebrada. Mas não arredei o pé. Dei dois tiros, tomei um comprimido de anfetamina com vodka e voltei pronto para continuar até o fim. Faltavam dois. “Para com isso. Se você morrer vai dar o maior problema.” Minha respiração não estava controlada o suficiente para responder qualquer coisa. Minhas narinas se abriam quando eu respirava como o touro que quer matar o Pica Pau no desenho que passava de manhã na televisão. Com a cara travada e olhar vidrado fiz um sinal com a mão para o estúpido lá de cima lançar o próximo míssil. Ele veio voando pelo túnel numa rota descendente reta e seca até estourar em cima de mim. Dei uns dois passos para trás e senti algumas mãos me segurando. Minhas costas já estavam sensíveis. “Não toca em mim, droga.” Fiz um malabarismo do capeta para conseguir me manter minimamente ereto e com a carcaça sob controle. Colocando todas as minhas fichas no meu senso de direção me joguei para o lado direito e trombei com o caminhão. Me virei já botando toda massa de carne para dentro num movimento só. “Seu velho dos infernos.” “Vai se fuder.”
Minha perna estava quebrada. Tinha certeza que estava quebrada. Doía desgraçadamente como dói uma perna quebrada. Mas não arredei o pé. Dei dois tiros, tomei um comprimido de anfetamina com vodka e voltei pronto para continuar até o fim. Faltava um. “Cala a porra dessa boca e solta isso logo seu desgraçado.” Como se fosse a própria vingança de Edmond Dante aquele trambolho morto e sem vida bateu em mim para matar. Tudo girava como um globo da morte. Meu peito não se enchia mais de ar e respirar era como buscar força num motor 1.0. Não tinha torcida, nem palmas, nem silêncio. Eram risadas. Eu queria morrer. Ali. Na frente daquele bando de estrume. Carregando aquelas carcaças podres para dentro de um caminhão refrigerado desligado. Cair, estrebuchar um vai tomar no cu e adentrar o infinito sono profundo dos justos no céu dos judeus. Estava tudo ficando embaçado e escorregadio. Não foi sangue, suor e lágrimas. Foi a cocaína que equilibrou aquele monstro de carne com o joelho e a vodka com anfetamina giraram a minha cintura e lançaram o pacote para dentro do caminhão como se fosse o Jordan arremessando um lance livre. Cesta. De chua. Caralho.
Minha perna estava quebrada. Meu braço estava quebrado. Tinha costelas quebradas. Tudo doía desgraçadamente até eu dar dois tiros e tomar um comprimido de anfetamina com vodka. Não faltava mais nenhum. “Cadê meu dinheiro, seus animais.” Ninguém mais ria. Nem fazia piadinha escrota. Nem falava nada. Um a um eles passavam por mim e me davam cem mangos cada e depois ficavam falando baixinho qualquer porcaria num canto como crianças mimadas repreendidas pelo bedéu. Me escorei na parede, fui respirando com mais calma e tudo foi começando a ficar claro e dolorido. O mundo parecia que estava diminuindo. Eu tremia como uma máquina de lavar roupa velha que parece que vai levantar vôo. Talvez estivesse babando. Eles olhavam para mim como quem espera o moribundo dar o último suspiro para tripudiar em cima do corpo morto. Dei mais dois tiros e tomei mais um comprimido de anfetamina com vodka. “O dobro ou nada que carrego mais dez, cambada de porco.”
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