REVELAÇÃO
Ele acordou assustado, pensava ter ouvido o estampido seco de um tiro. Seu corpo doía, seus olhos não conseguiam fixar um ponto, tudo girava numa vertigem nauseante. Tentou controlar a respiração enquanto ainda estava deitado sob a marquise.
Devagar, começou a levantar-se. Equilibrava-se apoiado numa parede. Não sabia onde estava, sua mente era um embaralhado de imagens desconexas. Ergueu-se.
À sua frente, a fachada envidraçada de um banco devolvia-lhe seu reflexo. Aproximou-se. Sua face era marcada por sulcos e desenhos de rugas profundas, seus cabelos se torciam num emaranhado grisalho e amarelo. Não se reconheceu.
Como por impulso, iniciou um caminhar lento, pausado, sem saber aonde iria. Arrastava consigo os farrapos que o cobriam. Um cheiro de suor e álcool exalava da pele, invadia suas narinas, um incômodo que ele desprezava.
A noite abafada fazia seu rosto brilhar banhado pela própria transpiração. Suas pernas o guiavam, fraquejavam vez ou outra, mas conheciam os perigos das horas de treva, não podiam parar. Entrou por uma longa avenida e seguiu em frente.
Tentava lembrar-se... Mas do quê?
Flashes explodiam em sua memória: uma criança, uma mulher, alegria... Tiros! Seus ouvidos sempre ecoavam tiros que o roubavam dos sonhos.
Os pés ardiam, mas não podia parar. Apenas sabia que não podia parar. Continuou marchando, cambaleante, pela avenida. Às vezes, curvava-se, sentindo sua barriga contrair como que atravessada pela lâmina gelada de uma faca. Tinha fome.
Queria lembrar... Mas para quê?
Uma brisa morna soprou em seu rosto e acariciou seus cabelos como se fossem as mãos generosas de uma Santa. Mas ele não recordava o que era fé. Seu mundo era concreto demais para permitir alguma crença. Seu Deus era o Nada.
Lixo, disso ele não esquecera. Do lixo extraía seu alimento. O lixo era a sua sobrevivência. Remexeu os sacos pretos recostados à beira de um poste, em frente de um botequim que lhe pareceu familiar. Mastigou as migalhas e os pedaços do que era comestível. Sede, tinha sede...
Um carro começava a encostar no meio-fio. Movido pelo instinto, correu para ajudar o motorista na manobra. Sinalizava, humilde, esperando que o motor silenciasse. O vulto de um jovem saltou do veículo estendendo-lhe uma nota de dinheiro. Ele abaixa a cabeça, submisso, sua forma de agradecer.
Vai ao balcão do bar, pede uma aguardente e bebe num só gole. Volta a sentir o sangue circular pelos membros entorpecidos e um suspiro de vida emerge do seu peito.
Recomeça a jornada pela avenida comprida. Passo a passo, percorre seu descaminho. A madrugada já ia alta. Ele força a visão, tenta focar o horizonte no negrume do asfalto. Inútil. Deve continuar pisando adiante.
Figuras humanas andavam ao seu redor, ele via, mas não era visto. Não compreendia. Quem era o fantasma? Ele ou a turba indiferente?
Gotas frias o atingem do céu, a chuva desaba de repente. O calor se desprende da pista, a água escorre como cachoeira pelas reentrâncias do seu corpo e se mistura à lama dos seus trapos. Um alívio percorre seus sentidos, era o bálsamo que faltava.
Ajoelha, sucumbindo ao cansaço. Sente uma ânsia de choro, mas esquecera o que eram lágrimas, seu mundo era seco demais para consentir compaixão.
Rasteja até um terreno baldio e vai abrigar-se numa grande manilha abandonada. Estende-se exausto...
Precisava lembrar... Mas por quê?
Fecha os olhos e os ecos de tiros assombram seus ouvidos. Lembra que quer viver e que amanhã irá alcançar o fim da avenida. Lá encontraria as respostas, ele sabia...
* Dedico este texto a um mendigo que amanheceu morto numa das esquinas do bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Seu nome era Mauro e eu o conheci. Espero que tenha encontrado a paz.
Ele acordou assustado, pensava ter ouvido o estampido seco de um tiro. Seu corpo doía, seus olhos não conseguiam fixar um ponto, tudo girava numa vertigem nauseante. Tentou controlar a respiração enquanto ainda estava deitado sob a marquise.
Devagar, começou a levantar-se. Equilibrava-se apoiado numa parede. Não sabia onde estava, sua mente era um embaralhado de imagens desconexas. Ergueu-se.
À sua frente, a fachada envidraçada de um banco devolvia-lhe seu reflexo. Aproximou-se. Sua face era marcada por sulcos e desenhos de rugas profundas, seus cabelos se torciam num emaranhado grisalho e amarelo. Não se reconheceu.
Como por impulso, iniciou um caminhar lento, pausado, sem saber aonde iria. Arrastava consigo os farrapos que o cobriam. Um cheiro de suor e álcool exalava da pele, invadia suas narinas, um incômodo que ele desprezava.
A noite abafada fazia seu rosto brilhar banhado pela própria transpiração. Suas pernas o guiavam, fraquejavam vez ou outra, mas conheciam os perigos das horas de treva, não podiam parar. Entrou por uma longa avenida e seguiu em frente.
Tentava lembrar-se... Mas do quê?
Flashes explodiam em sua memória: uma criança, uma mulher, alegria... Tiros! Seus ouvidos sempre ecoavam tiros que o roubavam dos sonhos.
Os pés ardiam, mas não podia parar. Apenas sabia que não podia parar. Continuou marchando, cambaleante, pela avenida. Às vezes, curvava-se, sentindo sua barriga contrair como que atravessada pela lâmina gelada de uma faca. Tinha fome.
Queria lembrar... Mas para quê?
Uma brisa morna soprou em seu rosto e acariciou seus cabelos como se fossem as mãos generosas de uma Santa. Mas ele não recordava o que era fé. Seu mundo era concreto demais para permitir alguma crença. Seu Deus era o Nada.
Lixo, disso ele não esquecera. Do lixo extraía seu alimento. O lixo era a sua sobrevivência. Remexeu os sacos pretos recostados à beira de um poste, em frente de um botequim que lhe pareceu familiar. Mastigou as migalhas e os pedaços do que era comestível. Sede, tinha sede...
Um carro começava a encostar no meio-fio. Movido pelo instinto, correu para ajudar o motorista na manobra. Sinalizava, humilde, esperando que o motor silenciasse. O vulto de um jovem saltou do veículo estendendo-lhe uma nota de dinheiro. Ele abaixa a cabeça, submisso, sua forma de agradecer.
Vai ao balcão do bar, pede uma aguardente e bebe num só gole. Volta a sentir o sangue circular pelos membros entorpecidos e um suspiro de vida emerge do seu peito.
Recomeça a jornada pela avenida comprida. Passo a passo, percorre seu descaminho. A madrugada já ia alta. Ele força a visão, tenta focar o horizonte no negrume do asfalto. Inútil. Deve continuar pisando adiante.
Figuras humanas andavam ao seu redor, ele via, mas não era visto. Não compreendia. Quem era o fantasma? Ele ou a turba indiferente?
Gotas frias o atingem do céu, a chuva desaba de repente. O calor se desprende da pista, a água escorre como cachoeira pelas reentrâncias do seu corpo e se mistura à lama dos seus trapos. Um alívio percorre seus sentidos, era o bálsamo que faltava.
Ajoelha, sucumbindo ao cansaço. Sente uma ânsia de choro, mas esquecera o que eram lágrimas, seu mundo era seco demais para consentir compaixão.
Rasteja até um terreno baldio e vai abrigar-se numa grande manilha abandonada. Estende-se exausto...
Precisava lembrar... Mas por quê?
Fecha os olhos e os ecos de tiros assombram seus ouvidos. Lembra que quer viver e que amanhã irá alcançar o fim da avenida. Lá encontraria as respostas, ele sabia...
* Dedico este texto a um mendigo que amanheceu morto numa das esquinas do bairro da Tijuca, Rio de Janeiro. Seu nome era Mauro e eu o conheci. Espero que tenha encontrado a paz.