O Encontro
O Acaso
Faltavam vinte minutos para o meio dia quando um táxi, um “Chevrolet Cobalt”, de cor prata com uma faixa verde e amarela, acabara de parar. Um senhor de meia idade, carregando uma maleta, dessas do tipo usadas por médicos, estava saindo apressadamente pela porta traseira quando ouviu, quase que ao mesmo tempo, dois gritos. A voz do primeiro era de uma mulher e a do segundo de um homem.
— Táxi, táxi! Moço, por favor, pede ao motorista para esperar — gritava Nastenka, enquanto saía do prédio em frente, na transversal do táxi estacionado junto à calçada.
— Táxi, táxi! — gritava Nino, correndo no sentido longitudinal da calçada e se aproximando por trás do “Cobalt”.
Poucos segundos após Nino ter alcançado o veículo e o sujeito da maleta seguido o seu caminho, Nastenka chegou.
Mantendo com uma das mãos a porta entreaberta, enquanto com a outra ajeitava o capuz do casaco para se proteger da chuva, Nino, educadamente e olhando diretamente o lindo rosto da mulher, uma quarentona elegantemente vestida com uma calça jeans, uma blusa preta e um lenço, com algumas tonalidades de azul, amarrado à cabeça, disse:
— Por favor, entre! O táxi é seu, senhorita.
— Muito obrigada! O senhor é muito gentil — Nastenka respondeu, enquanto fechava o guarda-chuva e se acomodava no banco traseiro.
Sem pensar, levada pela corrente filosófica de que “gentileza gera gentileza”, ainda se ajeitando no banco, ela, revidando o mesmo tipo de olhar e com tom de simpatia na voz, disse:
— Se desejar, podemos compartilhar o táxi. Por favor, entre!
Ele não titubeou e, entrando no carro, respondeu de súbito:
— Seria ótimo! Muito obrigado pela gentileza.
Após combinarem com o motorista o trajeto, eles, sentados lado a lado no banco traseiro, seguiram no táxi.
— Olá! Prazer em conhecê-la. Como vai? Sou Nino Ugo.
— Tudo bem, eu me chamo Nastenka Nispector.
**
O dia em que se conheceram era uma quinta-feira do final de outono. Aquele era o segundo ano do “Governo Temer”.
As manchetes dos jornais, as notícias nos sites e os programas de tevê estavam evidenciando os escândalos, envolvendo os políticos de Brasília. Escândalos estes decorrentes das “delações premiadas” de diretores e executivos das maiores empresas do país.
Fazia um dia triste, chuvoso, muito cinzento e turvo.
Há quase uma semana o mau tempo estava instalado no Distrito Federal. O compartilhamento do táxi, estacionado em frente à “Unidade Asa Norte” do Centro de Câncer de Brasília, foi o acaso da vida que permitiu o encontro de Nastenka e Nino, os protagonistas desta história que chegou aos meus ouvidos. Segundo se sabe, inspirada em fatos e personagens reais.
Nos parágrafos seguintes os senhores conhecerão um pouco da vida dessas duas pessoas adultas, que, antes de se encontrarem, viviam num mundo repleto de dias lôbregos, como o da quinta-feira na qual seguiram no mesmo táxi. Mas que juntos, compartilhando os mais puros sentimentos da amizade e do amor, transformaram suas vidas e passam a ter momentos de felicidade.
Enquanto o táxi fazia o percurso pela via ERL-Norte para a Esplanada dos Ministérios, que por pura coincidência era o destino de ambos, eles comentaram, no primeiro momento, sobres as dificuldades de se pegar um táxi nos dias de chuva, não só em Brasília, mas em muitas outras cidades do mundo. Em seguida a conversa rumou para alguns detalhes de suas vidas pessoais.
Então, Nino ficou sabendo que Nastenka havia nascido em Kiev. Seus pais, imigrantes ucranianos, na época moravam em Prudentópolis, município próximo de Ponta Grossa no Paraná. Quando sua mãe estava grávida, eles viajaram à Ucrânia para que ela nascesse no país de suas origens.
Entretanto, eles voltaram para o Brasil antes da filha completar dois anos.
Nastenka havia morado, da infância até os vinte e dois anos, em Curitiba, onde estudou e se graduou em letras pela Universidade Federal do Paraná. Mais tarde tornou-se funcionária do governo federal e trabalhava na área da educação
Nastenka adorou saber que Nino Ugo lecionava inglês e política internacional num curso que preparava candidatos ao ingresso no Instituto Rio Branco, que seus avós maternos eram italianos e que ele tinha sido criado em Florianópolis onde havia se formado em filosofia e história.
**
A Amizade
Ao descerem do táxi, mais uma vez se agradeceram mutuamente pelas gentilezas e se despediram sem muita demora, pois ainda chovia e Nastenka tinha uma reunião de trabalho.
Mas, segundos antes de se afastar, Nino em vez de dizer “tchau” disse:
— Nastenka, posso anotar o seu celular?
Ela não hesitou e, retirando o telefone da bolsa, respondeu:
— Claro, adoraria conversar sobre as suas aulas de política internacional.
Logo após anotarem os números, cada um seguiu o seu caminho. Uma questão havia intrigado os dois. Mas não houve um único comentário sobre o assunto:
No hall do prédio onde trabalhava aguardando o elevador, Nastenka murmurou pra si mesmo “será que Nino estava saindo do Centro de Câncer”.
Minutos depois de se despedir da moça, Nino, sentado na biblioteca preparando suas aulas, falou baixinho para si mesmo: “Será que Nastenka estava saindo do Centro de Câncer”.
Nos dias que se seguiram ao do encontro, Nastenka manteve a rotina normal de sua vida e do seu tratamento médico, que a obrigava comparecer duas vezes por semana nas consultas com o oncologista no Centro de Câncer. Isto porque há quase dois anos havia sido submetida a uma mastectomia parcial durante a pior fase do tratamento do câncer de mama.
Apenas um detalhe havia sido incorporado ao seu cotidiano, vez por outra, pegava o celular e questionava a si mesmo: “ligo ou não ligo para o Nino?”
Na expectativa de que a qualquer momento ele telefonaria, ela nada decidia.
Ela passou três semanas se questionando sobre ligar ou não para o professor italiano e, às quintas-feiras, pegando o táxi no mesmo local e horário do dia em que se conheceram.
Um mês se passou e eles não se falaram.
À medida que a vida continuava, ela seguia o seu dia a dia e não mais se questionou sobre telefonar ou não para Nino.
Era uma quarta-feira, havia acabado de anoitecer, quando o celular de Nastenka tocou. Imaginando ser alguma colega do trabalho, ela, que estava no ônibus voltando pra casa, não se importou e não retirou o telefone da bolsa, deixando o tocar por alguns segundos.
Ao entrar no elevador do prédio onde morava e ao abrir a bolsa para pegar a chave do apartamento, lembrou-se da ligação.
O coração de Nastenka acelerou no momento em que leu na tela do smartphone: “ligação perdida - Nino”. E sem refletir retornou a chamada que, por falta de sinal da operadora, não completou. Ela não insistiu, disse, quase murmurando: “Esperei mais de um mês, posso aguardar alguns minutos”.
Entrou no apartamento, colocou a bolsa na estante da sala, dirigiu-se à cozinha, serviu-se de suco de laranja, acomodou-se à mesa de refeições e ligou para o professor italiano:
— Alô! Nino? Como vai? Pensei que havia perdido o número do meu celular. Tínhamos combinado de manter contato naquela semana. Hoje, fiquei surpresa com a sua chamada tanto tempo depois. Eu estava no ônibus e não pude atender — Nastenka, tentando não transparecer sua radiância por ele ter feito contato, disse num tom contínuo de voz.
— Olá! Estou bem. É bom saber que você estava esperando que eu telefonasse. Não liguei antes porque precisei viajar. Voltei há poucos dias à Brasília, passei quase um mês em “Floripa” resolvendo um assunto de família. Gostaria de saber se topa continuarmos a nossa conversa do táxi? — Nino perguntou confiante de que ela concordaria. E de fato concordou.
— Acho que seria bom.
— Ótimo! Esta ou semana que vem? Eu posso amanhã, quinta-feira. E você?
Nastenka não tinha compromisso, mas instintivamente disse:
— Amanhã não poderei. Que tal na terça ou quarta-feira da semana que vem?
— Tudo bem. Então, você é minha convidada para um jantar no “Piantella”. Eles têm saladas maravilhosas. A que mais gosto vem com rúcula, presunto de Parma, grana Padano e figo fresco. Você conhece o Piantella, não conhece? — ele respondeu e, querendo de certo modo agradar, estava convidando Nastenka para um tradicional restaurante de Brasília.
— Apesar de não frequentá-lo, sei onde fica. A salada, para o meu paladar, está muito italianizada.
Após alguns minutos conversando sobre restaurantes badalados e frequentados por políticos e diplomatas, eles optaram por uma pizza num local mais discreto, nada de “happy hour”. Decidiram que o papo seria na “Pizzaria Valentina”, entre oito e quinze e oito e trinta da noite da terça-feira seguinte.
Quando Nastenka chegou à pizzaria, Nino já estava acomodado em uma mesa num canto junto à janela. Ao vê-la próxima à porta de entrada, foi ao seu encontro e dizia pra si mesmo: “Nossa! Realmente ela é uma mulher muito elegante e bonita”.
— Como vai, Nastenka? Se me permitir à sinceridade, você está muito charmosa. Você é uma linda mulher.
— Obrigada, Nino, por suas palavras gentis. Mas por favor, não exagere. Já passei da idade de receber lisonja. Você também é um italiano bonito e atraente. — ela respondeu sentando-se à mesa.
Enquanto ele saboreava uma salada caprese e ela uma pizza de tomate seco, a conversa continuou sobre elogios e informações pessoais.
— O vinho é muito bom! — ela disse, meneando a cabeça em aprovação e segurando o cálice para o garçom completá-lo.
Em menos de trinta minutos, Nastenka já havia tomado duas taças do “Memoro Rosso”, um dos tintos mais famosos da região da Toscana que Nino mais apreciava e havia escolhido para acompanhar a refeição daquela noite.
Ela, que há muito tempo não saía em companhia de um homem e também não degustava com frequências bebidas alcoólicas, sentia-se bem ao lado do professor e por isso falava o que raramente comentava até com suas colegas de trabalho.
— Como eu estava dizendo, depois de conviver com Leandro, meu ex-marido, por quase uma década, em um casamento malsucedido, divorcie-me e não mais me interessei por uma vida a dois. Faz mais de dez anos que moro sozinha. Adoro o silêncio do meu apartamento e acho ótimo não ter que dividir o banheiro com ninguém.
— E filhos? Vocês não tiveram? — Nino, que até então nada havia dito, perguntou enquanto fazia sinal para o garçom trazer outra garrafa de água mineral.
— Não, não tivemos. Depois de certo tempo, passei a considerar que não ter conseguido engravidar, apesar do tratamento que fiz por três anos, foi o melhor resultado. — ela respondeu de forma segura.
Até aquele momento, era Nastenka quem conduzia a conversa relatando detalhes de sua vida pessoal, inclusive da época que estava casada. Mas, de repente, ela parou de falar e, olhando diretamente nos olhos azuis do professor, indagou se ele era casado ou se vivia com alguém, se tinha filhos e o que gostava de fazer além de dar aulas. Quase perguntou se no dia em que se conheceram ele estava saindo do Centro de Câncer, mas preferiu não tocar no assunto.
Em resposta, Nino mencionou, quase sem refletir, que quando não estava preparando ou dando aulas, adorava ler, escrever e praticar esportes de montanhas. Tinha uma verdadeira paixão por literatura e considerava os escritores russos, ingleses e irlandeses os melhores nos textos narrativos. Para as duas primeiras atividades, Brasília atendia perfeitamente, pois suas livrarias estavam entre as melhores do país e havia na cidade comunidades acadêmicas bastante ativas. Entretanto, para praticar trekking e escalar montanhas, precisava sair do planalto central e que, com bastante frequência, nos feriados e nas férias viajava para diversas regiões do Brasil.
Antes de responder sobre a sua vida amorosa, ele ficou alguns segundos em silêncio, bebeu um gole de vinho, pensou e achou sensato falar.
Disse, então que tinha tido um relacionamento firme com uma italiana de Pienza, uma comunidade italiana da Toscana, com quem havia vivido maritalmente por quase oito anos, três na Itália e cinco no Brasil. Um período em Floripa e outro em Brasília onde o relacionamento tinha terminado há bastante tempo.
Depois de saber que o professor, ao concluir a graduação em filosofia, havia viajado para Itália e lá permanecido por quatro anos trabalhando na biblioteca da Universidade de Siena, uma das mais antigas da Europa, na região sul da Toscana, onde conheceu e se apaixonou por Giordana, sua ex-companheira, Nastenka continuou perguntando sobre a vida pretérita e atual de Nino. Ele respondia sem nada ocultar, mas ao final de cada resposta pedia para ela falar de si mesma sobre o questionamento formulado.
E assim continuaram conversando sobre as diversas fases de suas vidas. Falaram da vida profissional, de seus hábitos, das facilidades e dificuldades de trabalhar e morar em Brasília.
Antes de discorrerem sobre as pretensões, Nastenka mencionou detalhadamente o tratamento que estava fazendo, ressaltando que havia vencido o câncer, mas teve que remover a mama do lado esquerdo.
Quando Nastenka parou de falar e, timidamente, olhou para o seu próprio busto, Nino, que ouvia em completo silêncio, levantou-se e, erguendo a taça de vinho, disse:
— Proponho brindarmos ao acaso do nosso encontro naquele dia lôbrego, mas que está nos proporcionando momentos maravilhosos e, com certeza, a nossa amizade será repleta de dias lindos.
– À nossa amizade! – ela disse, repetindo o gesto do professor.
Todavia, disse aquelas palavras com a voz ainda um pouco triste devido às lembranças da mastectomia, lembranças estas que afloraram à sua mente nos últimos momentos da conversa.
– Sim, ao nosso encontro e à nossa amizade! E também ao nosso futuro. A vida nós podemos controlar. O tempo não. Ele segue e não espera por ninguém. Ainda pretendo publicar outros livros e conhecer muitas montanhas. E você, minha amiga? Quais os seus planos para os próximos dias e anos? – perguntou ele, que ainda estava em pé junto à mesa, mas naquele momento segurava carinhosamente uma das mãos de Nastenka.
Ela, que havia adorado ouvir o professor falar, com verdadeira paixão, sobre literatura e suas expedições, colocou a taça sobre a mesa e com as mãos entrelaçadas à de Nino, respondeu:
— Ler seus livros e viajar contigo para as montanhas, claro se você concordar.
E foi a partir daquela noite que Nastenka, aos quarenta e quatro anos, e Nino, um pouco mais novo, ambos solteiros, sem filhos e, de certo modo, sem problemas financeiros, passaram a viver dias, meses e alguns anos maravilhosos. Eles continuaram morando separados, mas os encontros e as viagens eram constantes.
Ela costumava passar dias e dias no apartamento do professor, ele preferia que ela o visitasse, pois assim não precisava se afastar dos seus livros. O casal adorava conversar sobre literatura. Era comum ficarem até tarde da noite no escritório, quase uma minibiblioteca, que Nino havia montado em um dos quartos do apartamento. Ali, além de ler, o professor escrevia seus livros de contos.
Quando o assunto não era literatura, eles estavam pesquisando na internet e planejando uma próxima trilha em montanhas.
Depois que passaram a ter uma vida em comum, Nastenka que, em um pouco mais de um mês, já havia lido as quatro obras publicadas do professor e realizado dois trekkings, tornou-se a sua fã número um. Nino que era filho único, órfão de pai e de mãe e não tinha um parente sequer no Brasil, passou a tê-la como a razão de ser da sua vida, tudo que planejava e realizava era com a participação de sua musa inspiradora Nastenka Nispector.
Mas lentamente e dolorosamente, também descobriram que a teoria do amor não correspondia à realidade da vida. Tiveram que abandonar as promessas de sentimentos e passaram a prometer atos, nem sempre simples de serem cumpridos, como prova do verdadeiro amor e da amizade.
***
A Doença
Sempre que oportuno, Nino gostava de conversar sobre os conceitos filosóficos do epicurismo, os quais ele era adepto e buscava convencer Nastenka de que eles tinham que aproveitar as coisas boas da vida. Os melhores restaurantes, os bons vinhos, realizarem as viagens sonhadas, etc.
No início, mesmo depois de ler os escritos de Epicuro, filósofo ateniense do século IV A.C, ela continuou não entendendo o que levava o professor a sugerir constantemente que eles priorizassem os prazeres da vida. Mas, a sua mente clareou após uma conversa que teve com Nino durante uma viagem ao Rio de Janeiro, quando foram fazer a trilha do Pico Cabeça de Dragão, uma montanha do Parque Estadual de Três Picos, em Nova Friburgo.
Aconteceu assim:
Era um sábado de junho, faltavam duas semanas para o inverno, mas a temperatura estava próxima de quatorze graus quando Nastenka e Nino desceram da camionete, uma quatro por quatro, da Treck Turismo, empresa que os apoiavam na trilha.
Eles, devido ao frio, rapidamente se despediram do motorista e seguiram com as mochilas em direção ao alojamento do refúgio do parque, o qual se encontrava não mais do que duzentos metros do estacionamento.
Aquela já era a quinta viagem de aventura que o casal fazia. Nastenka que antes de conhecer o professor só havia realizado passeios urbanos, já estava adaptada e gostando de praticar ecoturismo e caminhadas em montanhas.
Em menos de uma hora depois da chegada, eles já estavam em pé no hall do refúgio, prontos para iniciarem o trekking.
Enquanto Nino realizava o último “check list” do material e ajustava o Garmin no pulso esquerdo, Nastenka brincava com uma cadelinha que se chamava Kika, segundo lhe disse o monitor do parque.
Pelo planejamento, eles pretendiam chegar ao cume da Cabeça de Dragão em seis ou sete horas de caminhada, com trechos íngremes. Lá permaneceriam uns quinze minutos e voltariam ao refúgio onde pernoitariam.
Nada muito diferente das aventuras anteriores aconteceria, senão fosse a presença de Kika. Por mais que Nastenka e depois Nino tentasse fazer com que a cadelinha não os acompanhasse, não adiantou. Ela foi ao cume e voltou junto do casal. Caminhava à frente indicando os acessos mais fáceis e, vez por outra, parava, olhava para trás e esperava os amigos humanos alcançá-la.
O lanche, que Nino costumeiramente preparava em dois “kits”, foi rearrumado e dividido por três.
Após o trekking, por volta das nove horas da noite, o casal, sentado à mesa da copa do refúgio tomando chocolate quente, conversava:
— Eu gostei muito da trilha, do clima frio, do visual maravilhoso das três montanhas que dão nome ao Parque, o Pico Menor, o do Meio e o Maior, mas o destaque foi a Kika. Ela demonstrou com atos, gestos e olhares a verdadeira amizade que os cães têm pelos seres humanos. Hoje tivemos a oportunidade de constatar esse sentimento puro e sem interesses, o que nem sempre acontece entre as pessoas...
Enquanto Nastenka falava, a mente de Nino borbulhava como água fervendo. Ele pensava “estamos juntos há quase um ano e meio. Ela nada me escondeu sobre o seu tratamento médico, mas eu nada disse sobre...”.
Então, ele se levantou, colocou um pouco mais chocolate quente nas duas canecas, sentou-se bem próximo de Nastenka e disse:
— Querida, preciso te contar uma coisa muito importante. No começo do nosso relacionamento, achei que não era necessário que soubesse, mas a cada dia que passa nos tornamos mais do que amigos, namorados e cônjuges. — interrompendo o que ele dizia, ela, olhando carinhosamente e com uma das mãos tocando o rosto do professor, falou:
— Por favor, amor, conte-me o que lhe preocupa, só não diga que tem intenção de abandonar-me, pois quero ficar ao seu lado pelos próximos quinhentos anos.
— Sou portador da doença degenerativa “Machado-Joseph” — ele falou num tom de voz baixo, como se quisesse evitar que outras pessoas ouvissem. Mas, ali naquele ambiente de montanha ninguém poderia ouvir. Além deles, encontrava-se somente a cadelinha Kika que dormia em um tapete a poucos metros de distância da mesa.
Depois de um silêncio que não durou nem trinta segundos, mas que para eles pareceu eterno, Nino, com um leve sorriso no rosto, disse:
— Quinhentos anos não prometo, mas talvez possamos ficar juntos uns cinco.
— Querido, você só pode estar brincando comigo. O que quer dizer com cinco anos? Conte-me tudo sobre essa doença, pois eu nunca ouvi falar.
Ela preparou um bule de café, serviu primeiro o professor e depois a si mesmo. Ali tomando café e comendo cream cracker integral, Nino explicou que a doença de Machado-Joseph era uma neuropatologia rara, de origem genética, que se manifesta por um progressivo transtorno neurológico caracterizado pela falta de coordenação de movimentos musculares. Era normalmente associada a um bloqueio de áreas específicas do cérebro com uma crescente perda do controle muscular e da coordenação motora nos membros superiores e inferiores, além de perturbações da visão e da fala. Disse que aquela doença também tinha acometido sua mãe e seu tio. E que ele havia sido diagnosticado quando tinha trinta anos, então pelo acompanhamento médico e informações estatísticas não lhe restavam mais do que cinco anos para viver.
O dia já estava amanhecendo quando eles pararam de conversar e foram arrumar mochilas.
Às sete horas em ponto se despediram da Kika, entraram na caminhonete que havia acabado de chegar e seguiram para o Aeroporto Internacional do Galeão. Enquanto aguardavam o voo para Brasília, Nino tentava não mais falar de sua doença e acertava os detalhes da próxima viagem que pretendia fazer para os Cânions de Aparados da Serra, mas Nastenka, de tempo em tempo, fazia uma pergunta ou lia em voz alta informações que obtinha no seu smartphone sobre o mal de Machado-Joseph.
No momento da despedida, no táxi que os conduzia do Aeroporto de Brasília pra casa, Nastenka, abrindo a porta do carro com uma das mãos, disse baixinho junto ao rosto de Nino:
— Querido, amanhã à tarde nos veremos. Preciso ajeitar algumas coisas, mas antes das cinco estarei chegando ao seu apartamento. — e já do lado de fora do táxi, falou um pouco mais alto — Ah! Agora entendi o motivo do seu estilo epicurista de curtir a vida. Voltaremos a conversar sobre este assunto. Até amanhã, eu te amo.
Nos dias que se seguiram à viagem ao Rio de Janeiro, a doença do professor não deixava de ser o tema principal das conversas. Ela pesquisou na internet, buscou informações com profissionais da área médica e, nos habituais papos à noite na minibiblioteca, ela sempre tinha uma nova informação ou uma pergunta para Nino.
— Nos conhecemos na calçada do Edifício das Clínicas, na Asa Norte. Como já te falei, eu tinha terminado uma sessão de tratamento na Unidade do Centro de Câncer, que fica no décimo segundo andar daquele prédio. E você? Também estava em uma consulta médica naquele edifício? — ela perguntou por curiosidade, pois ele, em outra pergunta, havia respondido que fazia acompanhamento da doença numa clínica de neurodiagnóstico na Asa Sul.
— Não, não era uma clínica médica. Fui a uma consulta, melhor, uma conversa com a Doutora Nikita. Ela é uma psiquiatra que atua como psicoterapeuta, especializada em tratamento de pacientes terminais, e segue a linha do famoso médico e autor americano o Irvin D. Yalom. Você com certeza já leu Yalom, não? — ele perguntou.
— Sim, mas apenas o Best Seller “Quando Nietzsche Chorou”. — ela respondeu.
— Os que eu mais gostei de Yalom foram “De Frente para o Sol” e “O Enigma de Espinosa”. Ele realmente é um dos maiores conhecedores de assuntos relacionados aos temas “Como enfrentar o medo da morte” e “Ensina-me a morrer”. — percebendo que Nino não parava de falar sobre a finitude da vida, ela o interrompeu e disse:
— Querido, vamos preparar um chá?
— Sim, vamos.
Na manhã do dia seguinte, quando se preparavam para sair e tomavam um café com torradas, ambos em pé na cozinha, ela de repente perguntou:
— E o que te levou a consultar uma psicoterapeuta?
Ele, que estava com o pensamento voltado para sua primeira aula sobre “o Poder das Nações”, não compreendeu a pergunta e pediu que ela repetisse.
— Querido, ontem você me disse que no dia do nosso “acaso”, como gosta de se referir à data de quinze de junho, dia do nosso encontro, que tinha ido a uma consulta ou uma conversa com uma psicoterapeuta, se não me falha a memória, chamada Nikita, Ok?
— Sim, Nastenka. Correto.
— Então, se não se importa, poderia me dizer o motivo que o levou a tal consulta?
Ele olhou para o relógio e disse:
— Ainda temos quinze minutos, por favor, sente-se um pouco.
E procurando tratar o assunto com certa naturalidade, começou relatando o seguinte:
— Querida, como sabemos, a doença de Machado-Joseph não atinge a parte intelectual do paciente. Então, eu terei consciência durante toda a fase crítica do processo terminal, da minha degradação como ser humano. Dependerei de terceiros para as coisas mais simples da vida. — ele disse pausadamente e, após um gole de café, continuou falando:
— Vi o que aconteceu com a minha mãe nos seus últimos dois anos de vida internada num hospital. Na época, era somente nós dois, eu e ela, em Florianópolis. Eu cursava o terceiro período na faculdade e após as aulas, antes de ir para casa, passava no hospital para visitá-la. Quando ela não estava dopada, conversávamos por gestos e olhares, pois, além da paralisia dos membros, ela perdeu também a capacidade de articular a voz.
Devido às pesquisas na internet, Nastenka tinha conhecimento dos efeitos degenerativos que o professor teria que suportar no futuro, mas, até então, não tinha considerado o que estava ouvindo naquele momento, que, sem sombra de dúvidas, tornava a situação muito mais difícil do que já era.
Ele parou de falar por alguns instantes, levantou-se, caminhou em direção à bancada lateral da cozinha e acionou a máquina de fazer café para uma segunda xícara. Em seguida perguntou:
— Você sabe qual é o meu maior temor neste processo degenerativo? Não, não tente adivinhar, eu lhe direi. É ficar muito tempo em um leito de hospital dependendo da ajuda de outras pessoas para urinar, escovar os dentes, beber água...
— A conversa com a psicoterapeuta foi sobre esse temor. — ele disse olhando diretamente nos olhos de Nastenka.
— Nino, naquela época você não tinha ninguém, vivia só aqui no Brasil. E não poderia contar com o apoio de parentes que vivem na Toscana. Mas a situação mudou, ficaremos juntos até os nossos últimos dias. Você cuidará de mim e eu de você. Não é assim que funciona a vida das pessoas que se amam? — Nastenka disse e, indicando com a cabeça o relógio na parede da cozinha, concluiu:
— Professor, temos que ir. Não quero chegar atrasada na consulta com o oncologista.
— Ok, vamos. Depois voltaremos a conversar sobre esse assunto. — ele respondeu, enquanto caminhava em direção ao corredor de saída do apartamento.
À medida que os meses passavam, Nastenka se recuperava e diminuía suas idas à Unidade de Tratamento do Câncer, Nino perdia peso e não mais conseguia manter o padrão do seu preparo físico necessário às atividades de montanha. O casal, naturalmente, deixou de viajar e de fazer trilhas. Era comum encontrá-los, inclusive nos finais de semana, conversando e lendo, ele às vezes escrevendo, na minibiblioteca do apartamento.
Uma vez ou outra, durante os longos papos sobre literatura, Nino parava de falar, ficava em pé, próximo à estante de livros olhando fixamente às obras de seus autores favoritos como se as tivessem contando e com a mente a mil cobrava de si mesmo uma decisão: “cumpriria ou não o que havia planejado antes de conhecer Nastenka”.
Para ele, as teorias da medicina eram simples, convincentes e compreensíveis. Mas a vida, de quem traz em suas entranhas uma doença degenerativa, era confusa e cheia de indecisões. Nino jamais havia imaginado que aos quarenta anos conheceria uma paranaense vinda da Ucrânia e com ela manteria o relacionamento que estava mantendo. Tinha quase certeza que tudo seria mais fácil se ainda estivesse vivendo sozinho.
Mas o futuro de ambos mudaria, o encontro que não estava marcado aconteceu e havia gerado alterações significativas nos rumos das vidas dele e dela. Os sentimentos profundos do amor estavam cada vez mais arraigados em seus corações. Nino sabia que não havia como fugir ao próprio acaso, o que Nastenka chamava de destino. E isso o apavorava, pois ele sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria que cumprir o que havia decidido numa época em que as consequências não afetariam ninguém, mas agora existia Nastenka.
Numa noite de outono, quase dois anos depois da viagem ao Parque Estadual de Três Picos, Nino já estava escrevendo quando Nastenka chegou à minibiblioteca. Então, ele virou para ela e disse, numa voz não muito animada:
— Querida, lembra que há algum tempo planejávamos fazer um trekking nas montanhas e cânions de Aparados da Serra? Na época, cheguei a fazer contato com uma agência operadora de Cambará do Sul. Que tal reprogramarmos a viagem para o inicio do mês que vem?
Nastenka, que ainda estava em pé colocando a bolsa e o celular na estante, foi surpreendida com a pergunta. Há muito tempo eles não conversavam sobre trilhas e viagens. Enquanto acomodava o seu material na prateleira, ela pensava: “a cada mês a higidez física de Nino diminui. Já estamos no final de maio, em julho ele terá que fazer mais um check-up geral. Talvez Nino esteja pensando em realizar o seu último trekking, despedir-se das montanhas”.
Ele não cobrou uma resposta. Ficou em silêncio, sabia que ela estava refletindo sobre a proposta.
Dez dias depois, na manhã de um domingo de junho, o casal pegou um voo para Porto Alegre e de lá seguiram de van para Cambará do Sul.
Era nítido o cansaço de Nino durante a caminhada na margem do Cânion Fortaleza. E também era luzidio o semblante dele naquele cenário único de beleza natural. Mesmo com dificuldade nos trechos íngremes, ele não aceitava ajuda do guia nem de Nastenka que se ofereciam para carregar sua mochila.
O terceiro dia, pelo interior do Cânion Itaimbezinho, foi o mais difícil para ele, pois tiveram que mudar de borda dezoito vezes por dentro do rio com água um pouco abaixo dos joelhos. Quando estavam sentados lado a lado em uma pedra, numa das paradas para descanso, o pensamento, que nos últimos dias não deixava o professor em paz, fervilhava em sua mente. Ele não mais conseguia separar a vida da morte. Em sua cabeça não havia mais como viver sem planejar o que fazer e como fazer quando os piores dias chegassem.
— Oh! Uma “esperança” pulou para o seu braço, querido. Ela é muito linda, tem duas cores, verde e amarelo. Lembra a nossa bandeira. Sabia que há na cultura popular de muitos países a crença de que o pouso deste inseto em uma pessoa lhe traz boa sorte e esperança de dias melhores? — Nastenka, quebrando o silêncio e sem pensar, disse apontado para o inseto.
Ali, sentado sentindo a energia do interior da fenda do cânion, Nino, olhando para o inseto que estava imóvel em seu braço e depois para Nastenka, respondeu:
— A minha esperança de dias melhores está nas cores vermelho e azul da bandeira holandesa.
E, gesticulando para Nastenka permanecer ouvindo, ele continuou falando.
— Lembra-se da nossa conversa sobre a minha consulta com a Doutora Nikita, a psicoterapeuta? Gostaria de voltar o assunto, pois talvez eu não dure o bastante para ficarmos juntos os cinco anos que prometi. Em breve, Nastenka, serei um tetraplégico, terei dificuldade de falar e ficarei entravado em um leito de hospital aguardando o dia do fim, como vi acontecer com a minha mãe. Preciso saber se poderei contar com a sua ajuda quando...
Interrompendo o professor e tocando carinhosamente o seu rosto com a mão, ela falou:
— Sim, me lembro da nossa conversa e claro que o ajudarei no que for preciso. Mas ainda não entendi aonde quer chegar com essa sua citação sobre a Holanda.
Antes de responder, Nino olhou pra Dedé, o guia do trekking que se encontrava afastado uns vinte metros e perguntou: “podemos permanecer aqui por mais dez minutos antes de continuarmos?” Dedé fez o sinal de positivo e, percebendo que o casal estava conversando, deu cerca de dez passos na direção oposta aos dois e sentou-se.
— Antes de realmente opinar se poderá ou não ajudar-me, Nastenka, é crucial que você saiba o tipo de ajuda que poderei necessitar em breve. — ele, segurando a mão dela que tocava no seu rosto, disse e, por conseguinte, contou o que vislumbrava realizar quando os efeitos da doença começassem afetar a sua mobilidade.
Nino iniciou a conversa comentando que às vezes a vida nos apresenta opções que se tornam um verdadeiro dilema. E citou o caso vivido pela protagonista do livro “A Escolha de Sofia”, de William Styron, uma prisioneira polonesa em Auschwitz que recebe um “presente” dos nazistas: ela poderia escolher, entre o filho e a filha, qual seria executado e qual deveria ser poupado.
Em seguida, ele falou sobre a situação que vinha enfrentando após ter sido diagnosticado com a mesma doença da mãe, um dilema, não tão complexo como o de Sofia, mas que constantemente cobrava de si mesmo uma decisão, escolher por: Aguardar o seu fim imóvel numa cama, sem condições de falar e totalmente lúcido por cerca de um ou dois anos. Ou praticar o suicídio assistido, uma conduta legalizada em alguns países, para pacientes comprovadamente lúcidos em estado terminal.
Nastenka, enternecida com o que estava ouvindo, tentou interromper o professor, mas ele educadamente não permitiu e continuou falando:
— Em uma pesquisa na internet encontrei um artigo, um trabalho acadêmico de doutorado, muito interessante sobre o tema suicídio assistido, escrito por uma psicoterapeuta de Brasília.
— Não! — Nastenka exclamou com um semblante de espanto.
– Sim, ela mesma, a Doutora Nikita. Após alguns contatos por e-mail, convidou-me para uma conversa em seu consultório. Logo ao final da primeira entrevista, depois de ouvir-me atentamente, disse que talvez pudesse me ajudar. Ao longo dos nossos encontros, em outras consultas, fiquei sabendo que ela tinha trabalhado por cinco anos num hospital em Amsterdã. Lá ela havia participado, por um pequeno período, da equipe médica que cuidava dos pacientes terminais. Como você já deve ter ouvido falar ou lido, a Holanda é um dos poucos países que tem legislação específica sobre a eutanásia. Em resumo, a Doutora Nikita tem me ajudado bastante, não só como psicoterapeuta, mas também como minha representante legal junto à direção do hospital holandês. Ela está me auxiliando, porque para estrangeiros, além do cumprimento dos procedimentos internos, é exigida uma série de documentos da área médica e familiar.
Quando a “esperança verde e amarela” voou do braço de Nino, ele, ainda sentado na pedra, virou-se à esquerda, puxou a mochila para o seu colo, pegou uma maçã e a dividiu com Nastenka. Enquanto comiam, o professor prosseguiu com o seu relato:
— A minha vida seguia um rumo, digamos coerente com o prognóstico previsto pelos médicos para o meu futuro, pois desde que me separei de Giordana passei a viver completamente só, sem parentes e amigos. Não mantive relacionamento firme com outras mulheres. O meu mundo, além das aulas e do papo com alguns colegas do curso, com os quais vez por outra eu saía para um chope ou uma pizza, era focado somente na literatura e nas montanhas. Nada mais me interessava. Eu me limitava por imposição do meu próprio futuro. Cedo entendi que, às vezes, não é suficiente querer manter a vida. Ela precisa permitir que você a mantenha. Tudo seguia como devia seguir até que o acaso mudou as nossas vidas, Nastenka.
— Nos dias que se seguiram ao nosso encontro tentei de tudo para não te telefonar. Mas não resisti, aguentei apenas um mês. Acho que te amei antes de você me amar.
O professor, percebendo que lágrimas escorriam suavemente dos olhos de Nastenka, parou de falar, se levantou, deu um passo em cada direção, murmurou sobre a beleza daquele local. Então, voltando para onde estava sentado e com uma expressão carinhosa, disse:
— Querida, te conhecer, te amar e ser amado por você foi o melhor presente que recebi. Talvez tenha sido para compensar a minha baixa expectativa de vida. Agora que você já conhece a minha decisão sobre o dilema que vinha enfrentando nos últimos anos, gostaria de conversar e saber se poderei contar com a sua ajuda.
Depois de ouvir pela primeira vez alguém falar sobre optar ou não por morrer e entender o teor da ajuda que professor precisava, Nastenka nada disse. Ficou imóvel com as mãos no rosto e com uma fisionomia de total espanto.
Decorrido quase um minuto de silêncio, ela ficou em pé ao lado de Nino e, procurando manter-se tranquila, respondeu:
— Não posso acreditar no que acabei de ouvir! Entendi que você pretende, ou melhor, deseja em breve terminar com a sua própria vida. Suicidar-se com ajuda médica. É isso mesmo?
— Entenda o seguinte...
— Não, Nino! Você é que deve entender. A vida nos é dada de presente por Deus. Não é como uma caminhada pela montanha que pode ser interrompida a qualquer momento se algo não está indo bem. — ela disse e continuou:
— Você quer que eu, além de concordar com a sua decisão, também autorize junto ao hospital o seu suicídio? É essa ajuda?
— Como eles exigem, não só a concordância do paciente, mas também a de um parente ou do cônjuge, a sua proposta é casarmos e viajarmos para Amsterdã. Assim, com a minha participação ficará mais fácil Nikita conseguir a sua eutanásia na Holanda. Simples, não é, professor?
— Vamos embora! Quero sair deste cânion e voltar o mais rápido possível pra casa. Por favor, Nino, vamos.
Ao anoitecer do dia seguinte, o casal desembarcou no Aeroporto Presidente Juscelino Kubitschek, no Lago Sul de Brasília. E como era habitual nos regressos das viagens, compartilharam o táxi. Durante o regresso, por duas ou três vezes, Nino tentou voltar ao assunto do casamento e da viagem à Holanda, mas Nastenka, não dando continuidade a conversa, repetia que precisava pensar sobre a proposta.
Ao longo do mês que se seguiu, eles pouco se viram ou conversaram. Nastenka que, pelo resultado dos últimos exames estava curada, deixou de frequentar a Unidade de Tratamento do Câncer e voltou à sua rotina de trabalho. Contudo, por mais que tentasse, ela não conseguia tirar da cabeça o pedido de ajuda do professor.
Na internet leu diversos artigos científicos, inclusive sobre o trabalho da Doutora Nikita. Leu também a respeito de alguns casos sobre pacientes terminais que optaram por morrer, como o professor dizia, sem sofrimento e com dignidade.
Ele, devido ao agravamento do seu estado de saúde, havia solicitado afastamento do trabalho e quinzenalmente comparecia à clínica de neurodiagnóstico e conversava bastante por videochamada com a Doutora Nikita.
Depois de muito ler e conversar com alguns médicos sobre o lado humanitário do paciente terminal, ainda lúcido, ter o direito de optar por um suicídio assistido, Nastenka marcou uma entrevista com a psicoterapeuta Nikita. Elas conversaram por quase três horas, inicialmente acerca das questões legais, filosóficas e éticas da eutanásia. Em seguida o assunto foi focado no caso de Nino.
Numa tarde de quinta-feira, pouco menos de dois meses após o trekking em Cambará do Sul, Nastenka, passando a compreender o posicionamento de Nino com relação ao seu fim, seguiu para a residência do professor.
Durante o percurso até lá, pensava: “Da mesma forma que era fácil ser um comunista quando não se vivia sob o comunismo, como frisava Julian Barnes em seu romance “O Ruído do Tempo”, também era fácil ser contra eutanásia quando não se vivia sob a ameaça de uma doença degenerativa”.
Ao entrar no hall do apartamento, ouviu a música instrumental tocando baixinha no sistema de som da sala de tevê. Baseada naquilo, logo ela soube que ele estava escrevendo.
Silenciosamente, Nastenka caminhou em direção à minibiblioteca, parou um passo antes da entrada e, sem ser percebida, ficou admirando-o por quase um minuto. Ele estava mais magro e com uma aparência bastante fragilizada. Mesmo a certa distância pôde ver que o azul dos olhos já não brilhava como antes. Ao lado da cadeira, encontrava-se um par de muletas modelo canadense. Em seguida, com os olhos lacrimejando, ela disse, numa voz calma e clara:
– Quando vamos nos casar, querido?
***
O Fim
Dez meses se passaram, eles estavam casados e morando no apartamento do professor.
Nino passava os dias lendo e escrevendo. Escrevia mais do que lia, pois pretendia publicar o seu sexto romance. Mas o bloqueio do seu cérebro estava acontecendo mais rápido naquela altura dos acontecimentos, antes mesmo do que os médicos haviam previsto, e isto poderia atrapalhar seus objetivos. Ele já não tinha controle muscular dos membros inferiores, e as muletas tinham sido substituídas por uma cadeira de rodas.
Nastenka, que havia ajustado a sua rotina de trabalho em função das necessidades de Nino, passava as tardes junto do professor na mini biblioteca.
Enquanto ele escrevia, ela lia. Vez por outra, levava-o à Livraria Cultura do Shopping Center Iguatemi, onde curtiam horas folheando e comprando livros. Depois quase sempre o casal jantava no Abbraccio Cucina Italiana. Ela, que antes preferia massas, passou a acompanhar o marido nas deliciosas saladas italianas. O vinho raramente não era o Memoro Rosso.
Com o decorrer do tempo, devido ao estado de saúde do professor, coube a ela dar continuidade às tratativas com a Doutora Nikita para concluir o envio dos documentos ao hospital de Amsterdã. Quando o último laudo médico e as declarações assinadas por ela e pelo marido foram enviados, Nastenka passou vários dias se perguntando: “Será que estou agindo certo em ajudá-lo a planejar o seu fim?”.
Ela havia sempre acreditado que o bem gerava o bem. Então ela justificava seus atos pensando no seguinte: “Num mundo justo, em que a expectativa de vida do ser humano está além dos setenta anos, um adulto com apenas quarenta não deveria estar sozinho acertando os detalhes de seu próprio fim”.
Foi numa tarde de chuva no Distrito Federal, quando eles estavam chegando à Livraria Cultura, que o celular de Nino tocou. Antes de atender, ele pediu que a esposa o conduzisse na cadeira de rodas, para o canto esquerdo do hall de entrada da livraria.
– Alô! Nino, sou eu Nikita. Você está bem? Posso falar com a Nastenka? O celular dela deve estar desligado.
– Oi, Nikita! Sim, estou bem. Ainda acredito que só exista dia bom e muito bom. Estamos na Cultura do Iguatemi. Se o assunto for sobre o meu tratamento, ou melhor, o fim do tratamento, pode falar.
Ele ouviu, franziu a testa, levou a mão esquerda ao queixo e com um triste sorriso no rosto, disse:
– O comitê do hospital deu parecer favorável ao meu caso. Temos três meses até a internação.
Nastenka deu dois passos, agachou-se em frente à cadeira e abraçou o marido. Abraçados e calados, sem darem a mínima atenção para os olhares das pessoas ao redor, eles permaneceram ali por uns dois ou três minutos.
O professor sentia naquele momento um desejo enorme de viver como a maioria das pessoas. Se é que era possível ter um desejo real de viver e planejar a própria morte.
Foi ele, e não ela, quem rompeu o silêncio:
– Querida, sei que a partir deste ponto, a cada passo dado em prol da realização da nossa viagem para Amsterdã, haverá muita angústia. Mas sempre entendi que devemos, constantemente, traçar nossos caminhos, mesmo que em direções nem sempre desejadas. Devemos fazer acontecer e não esperar acontecer. Sei que a partir dessa notícia, seguirei a trilha por mim escolhida. Isso, de certa forma, me deixa tranquilo.
Ele sabia que Nastenka o amava e que buscaria forças para superar o enorme sofrimento que adviria dos próximos passos que eles dariam.
Uma semana antes de viajarem para internação no hospital, a esposa, atendendo a um pedido do professor, o levou à Florianópolis. Depois de dois dias passeando pela cidade, eles seguiram, em uma caminhonete quatro por quatro, para o Parque Nacional de São Joaquim. Naquele lugar, quando ele ainda era ainda um garoto, tinha realizado o seu primeiro trekking, “A trilha da Pedra Furada”.
No carro, à medida que a paisagem das montanhas ia sendo vista, Nino, apesar da dificuldade de falar e de movimentar os braços, gesticulava e fazia algum comentário com Nastenka.
***
Na antevéspera do voo para a Holanda, ele disse à esposa que queria dar um passeio pelas largas avenidas de Brasília e visitar algumas livrarias da cidade.
E tudo aconteceu conforme o previsto.
Dias depois, quando eles estiveram juntos pela última vez, o sol do começo da manhã brilhava à frente da janela do quarto do hospital em Amsterdã. Nino, que nos seus dias finais havia perdido o total domínio de suas ações, manteve-se tranquilo e chegou em paz ao topo da sua última trilha. Ele tinha certeza de que a sua finitude estava sob controle.
Nastenka sofreu o que foi preciso sofrer, mas cumpriu o que havia prometido ao marido e viveu com o professor o seu amor eterno enquanto durou.
Mesmo sem conhecer com profundidade as obras de “Friedrich Nietzsche”, ela agiu seguindo um de seus principais aforismos, o qual pode ser assim resumido:
“Pode-se prometer atos, mas não sentimentos; pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, promete algo que não está em seu poder; no entanto, pode prometer aqueles atos que normalmente são consequência do verdadeiro amor”.
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"Antes do Fim"
Posfácio
Querida Naira,
Espero que tenhas gostado deste novo romance, da mesma forma que apreciou os anteriores. O simples ato de redigir permitiu-me conversar mentalmente contigo, reviver os nossos bons momentos e vislumbrar as dificuldades que teríamos de enfrentar. Dificuldades essas que, quando estiver lendo este parágrafo, já farão parte do nosso passado.
Ao chegar neste ponto do livro, imagino você linda, na sacada do seu apartamento, sentada elegantemente, virada para o lado direito, segurando o romance com as duas mãos e com os cotovelos apoiados no braço da poltrona, lendo e murmurando pra si mesmo: “Ele não só publicou o livro inspirado nos fatos reais de nossas vidas, como também, ao redigir esta carta no final, divulgou que a personagem “Nastenka” foi criada com base na minha vida”.
Não, Naira. Não se preocupe. Os nomes dos verdadeiros protagonista desta história não foram divulgados publicamente, pois este “Posfácio” só foi impresso no seu exemplar por uma solicitação minha à editora, que ficou de encaminhá-lo ao seu endereço seis meses após o término da minha existência.
Talvez você não tenha gostado da expressão “Antes do Fim”, esse era o título provisório. Mas não tive tempo nem inspiração para criar outro antes de enviar os textos finais para impressão. Na época, o meu objetivo era concluir o livro antes da nossa viagem à Holanda.
Querida, em breve, não terei mais condições físicas para digitar, então, talvez este seja o último parágrafo por mim escrito, no qual termino resumindo a minha eternidade em duas partes: antes e depois de conhecê-la. Quando eu nada mais esperava da vida, num dia, chuvoso, muito cinzento e turvo, de junho de 2017, que se tornou o mais belo da minha vida, o acaso veio em meu auxílio e me aproximou de você. E com você vivi pouco, mas intensamente feliz durante o nosso idílio.
Quando se está apaixonado, passa-se agir sem medo e não se tem remorso dos seus atos. Obrigado pela ajuda.
Com amor e...
Ettore, o Professor