Ser da Noite - II
Num quintal apinhado de árvores cujas folhas mortas atapetam o chão e o mato cresce desordenado uma cigarra rompe o silêncio do entardecer.
Os últimos raios de sol se escondem sob uma cordilheira que circunda a pequenina vila de Andares.
As sombras se engradecem sob as casas, fazendo-as se sentir ainda menores. Homens, mulheres e crianças vão aos poucos cessando suas andanças e atividades e escondem-se em seus casebres. Afinal, a noite surge engolfando a cor da tarde e muitos temem serem abocanhados pela obscuridade. Apenas uns poucos animais agora circundam; Um gato negro que caminha por sob os muros com agilidade de um equilibrista. Um cavalo que pasta no canteiro central da avenida que marca a entrada da vila. Cães ladram em algum canil.
Dentro de uma casa com aspecto sempre miserável na Rua das Porteiras uma réstia de luz se acende lá dentro e escapa pelas frestas da porta e janelas. É uma claridade débil e mortiça proveniente de velas que se estica através de pequenas fissuras na madeira e toca um gramado morto e um caminho de pedras que levam a porta.
“Lá dentro”, dizem os vizinhos moradores e por toda redondeza “vive um espírito de um homem rude que não pôde seguir ao paraíso ou inferno tamanha suas ações que desagradaram tanto a Deus como o diabo, sendo assim foi obrigado a vagar pelo mundo, sem ninguém que o acolhesse preferiu o conforto eterno do seu antigo lar”.
“À noite, sua alma vaga pela casa iluminada por grandes castiçais, enquanto lamenta os atos terríveis que um dia cometeu e implora perdão”.
A história é contada normalmente as crianças antes de dormirem ou em pequenas rodas de amigos. Ninguém sabe ao certo o quê ou quem vive na velha casa ou de onde nasce a luz que a ilumina a noite e lhes falta coragem para averiguar.
“quem acende as velas?” perguntam as crianças mais curiosas (não aquelas que escondem o rosto nas mãos, horrorizadas, enxugando as lágrimas e abafando os soluços, mas aquelas cujos olhos brilham em vívido interesse em um dia cruzar aquela porta para vê-lo de perto) ou as mais crescidas e cientes que espíritos nada podem tocar.
“anjos, demônios e outras criaturas da noite que o guardam ali, para garantir que não fuja de sua casa que é também sua prisão e tente alcançar o céu implorando clemência” dizem seus pais, avós ou amigos que estejam lhe contando as histórias.
Nesse trecho se encerram os relatos e todos se dispersam, fugindo a outros assuntos ou adormecendo. “Não há nada que possa ser feito”, às vezes diz alguém como para concluir de vez, “ah não ser deixá-lo em paz e nunca. Nunca perturbar lhe em sua vigília eterna”. Lá fora a noite se mantém como um véu sob a terra e sob o sono dos homens até que nasce o dia.
O sol ressurge espreitando por sobre os morros.
Amanhece e a casa em aspecto miserável na Rua das Porteiras desperta indiferente as cores do dia, pelas frestas nas portas e janelas apenas a escuridão espreita do seu interior.