Rato condicionado perdido no labirinto de Skinner [conto]
Acordei de novo. Não lembro do que aconteceu ontem a noite. Não faz muita diferença. Não gosto de lembrar muito das coisas. Lembranças podem arruinar uma vida inteira em busca de porquês. Também não lembro de onde vem as dores, tenho a impressão que elas sempre tiveram aqui. Sempre soube que é muito mais fácil aprender a conviver com os problemas do que tentar resolvê-los. Não gosto de ir contra minhas convicções, e a experiência me mostrou que o melhor jeito de conviver com os problemas é bebendo. Por isso, antes que perceba que estou tremendo a ponto de não conseguir andar sem me escorar na parede, fiz um café com conhaque e raspei dois pinos que achei no bolso da calça de ontem para desentupir o nariz. Foi o suficiente para me sentir vivo, mas quando os urubus no estômago enviaram os primeiros sinais de que precisavam de mais carniça fui para o bar do Jaime.
Entrei no bar e o velho me olhou como se eu fosse um fiscal do imposto de renda. “Me dá o que essas moedas puderem pagar.” Ele empurrou as moedas para a gaveta e me deu meia dose de pinga. Um tipo texano surgiu como uma aparição do meu lado falando como quem pode mudar o rumo de uma vida. “Tá precisando de dinheiro?” “Um homem precisa pagar suas contas.” Ele estendeu uma nota de cem com uma mão e um trinta e oito com a outra. Não estava preparado para aquilo, não é o tipo de trabalho que normalmente me oferecem num fim de tarde de uma terça-feira ensolarada enquanto estou curtindo meu momento de entretenimento forçado. “Você sabe usar uma dessas?” “Sei.” Não era o que eu estava acostumado a fazer, mas também não estou acostumado a viver sem pagar o aluguel. “Você só me dá cobertura junto com o Grandão ali e o Tonhão aqui.” “Certo.” “Se você sobreviver te dou a outra metade do pagamento.” Essa última fala me fez pensar que talvez aquele trabalho não fosse para mim, além de esperar alguma coisa melhor como informação, tipo: “é um negócio arriscado, então fica esperto” ou “não é nada demais, só precaução.” Ele me mandou esperar na frente do bar com os outros e encostou no balcão para tomar mais uma.
Ficamos na frente do bar como capangas guardando o QG. O Grandão acendeu um cigarro, pedi um para mim e colei do lado dele. “Que tipo de negócio vamos fazer?” “Não interessa, só se preocupa em proteger o chefe.” “Não sou da polícia, só quero saber onde estou me metendo.” “Você recebeu uma boa grana e uma arma, com certeza não é para olhar as crianças no parquinho enquanto a Dona Dondoca fode com o jardineiro.” Não parecia que seríamos grandes parceiros de trabalho. Também não sei se quero trabalhar com essa organização. Me parece que eles atuam numa faixa de mercado com a qual não estou muito familiarizado. Foi nesse momento que pensei: que bom que eles não sabem que nunca atirei em nada. Em seguida um pensamento atormentador começou a sombrear minha mente: e se eles soubessem que eu não sei atirar só pelo meu jeito pacífico de otário e me pegaram para ser bucha de canhão?
Quando já estava perto de voltar para o bar e devolver a arma, o dinheiro e pedir desculpas por ter aceitado um trabalho que não tinha coragem de fazer o chefe saiu pela porta vai e vem. “Vamos rapazes, chegou a hora de me recompensar por pagar vocês tão bem.” Entramos os quatro dentro do Santana que estava parado na esquina e rumamos para o encontro onde é melhor levar gente armada para te defender. Saímos sem fazer barulho e andando dentro do limite de velocidade. “Olha só, nós vamos fazer assim: eu e o Tonhão vamos entrar na casa, Grandão, você fica na porta de olho no que acontece aqui fora. E você, Tripa Seca, vai ficar com o carro parado na esquina da frente observando o arrabalde. Qualquer coisa errada você aparece na frente da casa já no piloto que o Grandão sabe o que fazer.” Era isso? Ficar no carro vendo o movimento da esquina? “Ok.” “Presta atenção, se você for atirar, atira para matar. Se a gente não sair em quinze minutos vocês entram fudendo com tudo.”
Definitivamente eu não estava pronto para aquilo. Todo momento eu tentava chegar a uma fórmula que me permitisse desistir da empreitada e sair dali carregando minha honra e andando pela vontade das próprias pernas. Como diria meu pai, o covarde é quem sobrevive para viver com a glória do herói. Não quero a glória de nada, só sobreviver já me basta. Quando reparei a gente estava passando pela Vila do Médicos. O chefe parou o carro numa esquina e mandou eu assumir o piloto. “Tá vendo onde estão aqueles dois carros parados? Deixa a gente na frente daquela casa. Depois para no fim da rua. Fica esperto no Grandão que ele que vai te dar o sinal pra você vir buscar a gente. Se você notar alguma coisa errada aqui fora você senta o dedo e vem buscar a gente aqui na frente.” Notar o que errado? Um bêbado nessa rua ia me parecer estranho, deleto ele?
Tremendo e sem saber o que fazer deixei os três na frente da casa e me posicionei onde achei que o chefe tinha dito para parar. Coloquei o cano no colo e fiquei olhando pelo espelho retrovisor. O Grandão ficou parado na frente da casa conversando com outro brutamonte que tinha aparecido lá. A cada cinco segundos o Grandão dava uma olhada para mim parado na esquina. Aquilo não parecia certo. Agora era a hora de aparecer atirando? De repente um barulho de pneu derrapando fez eu dar um salto no banco e a arma cair no assoalho. Me abaixei para pegar e quando levantei o carro que tinha feito a curva na esquina a milhão parou na frente da casa e dois caras saíram pela porta detrás e começaram a atirar a esmo. Liguei o carro, engatei primeira, virei a esquina sem chamar a atenção e fui embora antes que eles percebessem minha presença.