IMPRESTÁVEL
Noite fria. Céu sem nuvens. O vento gelado atravessa o meu peito, faz as lágrimas saltarem sem querer do canto dos meus olhos. Ganho a estrada. Naquela altura nenhum movimento, nenhuma alma viva por perto. Tiro o capacete, jogo longe. O álcool ainda entorpece os meus sentidos, me traz todas as malditas lembranças que me perseguem sem me dar trégua. Na minha frente, o estreito caminho iluminado pelo farol da moto só me faz ter a certeza de que não tenho rumo algum pra seguir. Eu já atingi o fim da linha, já combati o combate e saí derrotado, tenho mais é que entregar as armas. Está na hora de deixar de fazer hora nessa porra de mundo. Acelero mais, desligo o farol, fecho os olhos e deixo a noite me engolir. Daqui a pouco vou sentir a moto bater em alguma coisa. Minha cabeça vai estourar contra um poste, vou estraçalhar meu peito em um tronco de árvore, num obstáculo qualquer que o diabo vai pôr na minha frente. É só esperar. E é mesmo só uma questão de segundos pra sentir a moto bater em alguma coisa. Meu corpo voa cruzando o ar gelado. Caio, saio rolando, escuto o barulho da moto capotando, cortando o mato baixo, se arrastando pelo chão. Mas não teve nenhuma merda de poste pra eu acertar, nenhum cacete de árvore na frente pra me arrebentar. Vazei pelo vazio e acabei no chão, no meio do capim úmido do orvalho. Estou um pouco tonto, mas escuto minha própria respiração. Mexo as pernas, mexo os braços. Só sinto uma ligeira ardência no braço, outra na cintura e também no lado direito do rosto. Continuo vivo. Merda, ainda não foi dessa vez.
Abro os olhos e vejo um céu repleto de estrelas cintilantes, na penumbra o vento frio revolvendo os galhos embrenhados na escuridão da noite. Agora só me resta esperar. Ao amanhecer, certamente alguém passará pela estrada e verá a moto caída, com o garfo todo retorcido pela batida no tronco caído atravessado no terreno. Verá também o meu corpo estatelado no chão, no meio do capim. Logo depois chegará uma ambulância, o socorrista constatará que só tive algumas escoriações, no hospital me darão um banho, farão um curativo ou outro, me porão em pé de novo. Quando eu sair pela porta, talvez algum irmão ou primo virá até mim, perguntando o que é que me aconteceu. Ou não haverá ninguém, só a rua, impiedosa, me esperando pra me jogar de novo na sarjeta. E então saberei que tudo voltará a ser exatamente como sempre foi.
Puta que pariu, nem pra me matar eu presto.