OS CAFAJESTES

Foi uma surpresa quando, em pleno meio da tarde daquela quarta-feira, vislumbrou o rosto dele através do olho mágico. Destrancou a fechadura e abriu a porta, recebendo-o com um beijo ardente e um caloroso abraço. Mas a retribuição foi mais fria do que de costume.

Ele foi entrando pelo apartamento, depositou a maleta na mesa de centro, sentou-se no sofá. Tinha os olhos baixos e um semblante abatido.

_Tudo bem? Ela lançou a pergunta, já desconfiando que a resposta não seria boa. E ele foi direto ao assunto.

_Débora, acho que passou da hora da gente ter uma conversa séria sobre tudo isso que vem acontecendo.

Ela pisou no tapete felpudo, dobrou uma das pernas e sentou sobre ela. Inclinando o corpo em sua direção, depositou a mão perto do joelho dele.

_Sobre o quê, querido?

Ele suspirou, levou as mãos ao rosto, depois apoiou os cotovelos nas coxas e lançou-lhe um olhar sério.

_Acho que precisamos pôr um fim nesse nosso caso.

Ela levantou as sobrancelhas, retirando a mão da sua perna e fazendo cara de desapontada.

_Outra vez essa conversa...

_Débora, não tem como manter essa nossa situação. Você é a melhor amiga da minha mulher, como é que pode estar acontecendo isso entre a gente?

_Eu sei que você não é feliz com a Vivian, Guto. Você acha que, por mais que eu possa estar apaixonada por você, eu iria aceitar deixar acontecer alguma coisa entre a gente se eu não tivesse convicção disso?

_Mas não tem cabimento essa história. Eu estou me sentindo muito mal com isso. A Vivian sempre foi uma mulher de ouro, minha companheira, sempre me amou mais que tudo. Fez e faz todos os sacrifícios por mim. Isso não é justo com ela...

Ela então se virou, levantando-se:

_Isso é o que você acha.

Ele franziu a testa, acompanhando-a com os olhos até vê-la abrir a geladeira.

_O que você está dizendo? Você conhece a gente desde o nosso casamento. Não preciso contar nada do que a Vivian já passou do meu lado. Você sabe de tudo. Tudo que ela teve que aguentar.

_É, eu sei – consentiu, trazendo um copo de suco. Mas é você que não sabe de tudo.

E sentou novamente no sofá, estendendo-lhe o copo.

_Você quer?

Ele fez um sinal negativo com a cabeça, olhando-a com desconfiança.

_Do que você tá falando? O que é que eu não sei?

Tomou um gole do suco, e então voltou os olhos para ele.

_Onde você acha que a Vivian está agora?

Ele deu de ombros.

_Sei lá. Em casa, na Igreja, no lar. Ela sempre vai ao lar durante a semana. Mas o que tem isso?

_Espera um pouco aí.

Ela se levantou, foi até a cozinha, e logo depois voltou, trazendo o celular. Apertou dois botões, depois colocou-o sobre a mesa diante deles. Ouviram um som de toque.

_Pus no viva voz.

Ele ficou estático, sem entender. Três toques depois, uma voz feminina saiu pelo aparelho.

_Oi amiga! O que foi?

_Oi Vi, tudo bem com você?

_Tudo, claro! A voz ficou um pouco mais baixa, como que se ela tivesse afastado a boca do aparelho – Espera um pouco amor, é a Dé.

Um sorriso sarcástico brotou em seus lábios, enquanto ele grudou os olhos no celular sobre a mesa.

_Fala Dé.

_Desculpe estar atrapalhando alguma coisa.

_Não, não está atrapalhando nada. É o Bruno, que não para um segundo. Isso tem um fogo, meu Deus...

Ele esboçou uma reação, mas ela levou o dedo à boca, fazendo um sinal para que ele permanecesse calado.

_Espero que estejam se divertindo.

_Divertindo? Esse homem me põe no céu, criatura.

Ouviram um barulho parecido com um beijo.

_Espera um pouco, amor. Deixa eu terminar aqui. Ai, essa mão. Hum...

_Olha, eu só liguei pra te lembrar do nosso encontro com a Marta amanhã cedo. Tá lembrada, né?

_Sim, claro. Eu passo aí às nove, tá bem?

_Tá bom então. Beijo, amiga. Divirta-se.

_Tá, beijo.

Antes de desligar, ainda puderam ouvir mais um som de beijo, e um “ai, amor” que deixou-o ainda mais perplexo.

_Mas que palhaçada é essa? Bradou, visivelmente transtornado.

_É a tua mulherzinha de ouro – tomou o celular e o desligou. Parece que está se divertindo bastante, não acha?

Ele se levantou do sofá, com o peito inflado. Seus olhos chispavam, vermelhos de ódio.

_Me diz de onde que ela estava falando, que eu vou lá agora!

A mulher deixou o copo sobre a mesa e largou-se no sofá.

_Guto, meu querido, não é assim que se resolve as coisas. Você está de cabeça quente, vai acabar fazendo uma besteira...

_É claro que eu estou de cabeça quente. Como você acha que eu poderia estar depois de ouvir o que eu acabei de ouvir?

_Pois é, e você achando que a sua mulher estava no lar, cuidando dos velhinhos. Quanta inocência...

_E como você sabe disso?

_Nós somos melhores amigas. Não tem segredo entre nós...

O homem a olhou, balançando negativamente a cabeça.

_E desde quando isso está acontecendo?

_Há mais tempo do que você possa imaginar...

Ele levou a mão à boca, dando passos na direção da janela.

_O que que é isso, Deus do céu? De repente, voltou-se novamente para ela. E esse Bruno, quem é?

_Eu não conheço, só vi umas duas vezes. Mas é bonitão, tem uns ombros largos, grandão.

Seus olhos pareceram saltar de órbita.

_E você nunca me contou nada?

_Eu, te contar? Pra que? Pra estragar o seu casamento de ouro?

Ele passou a mão no rosto, em total desconcerto.

_Como pode isso, meu Deus, como pode?

_É o que eu te falei, querido, o seu casamento é uma farsa. Você não está feliz com ela, e ela não está nem aí pra você.

Ele parou diante da janela. Olhou o horizonte da altura do décimo primeiro andar, mas seus olhos não enxergaram nada. A raiva, a traição revelada, os tantos momentos de remorso vividos ultimamente, o sentimento de culpa que lhe invadia toda vez que abraçava sua esposa ao chegar em casa, tudo aquilo veio à sua mente, como um turbilhão de pensamentos entrelaçados, misturados, sem nexo. Voltou-se para a mesa e apanhou sua maleta. Sua fisionomia exalava ódio quando rumou para a porta de saída.

_Guto, espera, vamos conversar – ela disse, saindo em seu encalço.

_Não tem conversa. Eu não quero ver vocês nunca mais!

Girou a maçaneta, avançou para o corredor e bateu a porta, deixando-a de pé, parada diante do apartamento fechado. Ela então se deu conta do que tinha feito, e sentiu que talvez entregar a amiga daquele jeito não tivesse sido a melhor coisa a fazer. Mas ela percebia que, se não tomasse a iniciativa, acabaria perdendo aquele homem. E isso ela não aceitaria, ainda mais sabendo de tudo que ocorria diante dos seus olhos sem ele nem ao mesmo desconfiar.

Mas agora temia que tivesse ido longe demais. Talvez pudesse ter pensado melhor em como fazer com que ele desistisse daquele seu casamento de fachada, pra finalmente assumir que ela sim era a sua mulher de verdade. Ela sim, o amava de verdade. Ele tinha que ver isso, afinal!

Voltou-se, com um certo cansaço tomando-lhe as pernas. Esticou o corpo deitando no sofá, fechou os olhos e trouxe as mãos à testa. Permaneceu assim alguns instantes, absorta em pensamentos vagos, até que o toque do celular a despertou. Correu ver a ligação. Na tela, a foto dele. Apressadamente, atendeu.

_Guto!

A sua voz estava um pouco abafada. Pôde perceber que ele estava ainda mais transtornado. Mas o tom soou reconciliador quando ouviu-o dizer:

_Bati o carro. Você pode vir aqui me socorrer?