DE ASSIS A MOORE

DE ASSIS A MOORE – TRAJETÓRIA DE UMA VIDA

Vera Lúcia Ciuffo

GALERIA ASSIS - FASE I

Encontrei-a nos idos de 62 incrustada entre dois marechais: o Deodoro e o Floriano Peixoto, ali, pequena, mas já garbosa e simpática, chamavam-na Galeria Assis. Tímida, sem saída mas repleta de vida, a ruela, com casinhas numeradas de 01 a 10 de onde exalava o doce aroma da mistura que partia de uma ruidosa vizinhança que me lembra os cortiços das histórias dos grandes mestres. Era o perfume da comida caseira misturada aos conflitos e gritos de mães histéricas em busca de sua prole agitada a correr de pique ou atrás de uma bola no, ainda sem asfalto, leito da rua.

Naquela ocasião, estava me recuperando da saída da rua Paula Lima, que me serviu de modelo de vida e onde eu deixara amigos de infância e as cocadas do "seu" Osvaldo, tão ao alcance de minha gulodice e.... quando nelas penso:pretas, brancas e marrons, chego a sentir seu gosto e aroma indefectíveis, chamam a isso de memória gustativa, que nos transporta, como um túnel do tempo ao passado sem escalas.

Quando ali morava,meu caminho, quase um atalho, para o Sport Club, era um beco, uma avenida, onde anos mais tarde, já avó, vou visitar os pais de meu amigo Cremô, que por lá residem.Essa avenidinha, nos conduz à via férrea, mas, naquela época sempre me parecia uma aventura, cruzá-la para ir ao clube, quase diariamente, fosse para a natação, ou para assistir ao meu pai jogar tênis, ou ainda, para assistir aos jogos de futebol na companhia dele,ou, ainda,simplesmente para brincar. Entretanto, minha maior alegria, naquele clube , eram as matinês aos sábados, quando víamos seriados:Tarzan,com Johnny Weissmuller, ou Zorro, nas suas versões em preto e branco, que durante meses, nos atraiam para o salão principal do clube, para descobrirmos os desfechos dos folhetins.Não posso me esquecer, também dos bailes de carnaval, nas segundas feiras gordas, à tarde, onde eu soltava a minha adrenalina e meu contentamento, ao som dos sambas e marchinhas,onde o cabelo da nega não negava a sua raça, onde as "Auroras" não eram sinceras, em que o bebê pedia mamadeira e nós queríamos um dinheiro aí!!! Aqui na cidade a gente também tinha a felicidade de cantar ..."ai se eu fosse feliz, prá poder sorrir e cantar, beber e aquela mulher amar, o destino não quis, tenho que me confomar..."de Alfredo Toschi, que maravilha, onde eu fantasiada com esmero e elegância, que só minha mãe sabia ter e fazer, desfilava despreocupadamente pelos corredores dos salões! Ah, sim acabo de me lembrar de uma marchinha que fez muito sucesso: "você não emplaca sesenta e um, de jeito nenhum, de jeito nenhum", não me lembro quem a compôs e que era cantada à exaustão pelo meu amigo Genin.Ainda bem que deu tempo de descobrir que, pelo menos todos ao meu redor emplacaram o ano de 1961, ufa!!!

Naquele espaço da sede social,comecei minha carreira de dançarina, posto que, lá foi minha entrada às festinhas de aniversário, bailes de debutantes e aos bailes de réveillon , onde até meia noite, dançávamos uma variada série de músicas e à meia noite, parávamos todos, para escutarmos e cantarmos o Hino Nacional, orgulhosamente!!! Depois, desse hino, uma explosão de gritos, abraços, beijos e, junto ao espocar das rolhas do champanhe, chegavam as músicas de carnaval!!!!! Que maravilha, começar o ano, dançando, junto aos amigos e com a certeza de que estávamos inaugurando uma vida nova!!!!!

Uma atração diferente, ali agarradinha ao clube, estava a fábrica da coca cola e diante suas vidraças, que davam para rua, ficávamos vendo o processo de produção, um deslumbramento quase hipnótico, as garrafinhas desfilando qual misses, elegantes,nas esteiras, sendo envasadas, rapidamente, eliciando nosso desejo de correr lá para a cantina e pegarmos um desses vidrinhos, geladinhos nos dias de verão, para desespero de nossas mães guardiãs e aflitas que vigilantes nos falavam:

"meninasvocêsnãovãocomerdireitotomandorefrigerantesforadehora!!!!!

No caminho para o Sport, havia também o emblemático Clube Ginástico.Acredito que naquela época fosse o único ginásio no formato dos poliesportivos de hoje.Lá também assistimos a alguns jogos de vôlei e basquete.Um clube fundado por imigrantes alemães, que durante décadas, serviu como ponto de referência para o esporte local, inicialmente com o nome de Turnerschaft, com o advento da segunda guerra , para que maiores problemas fossem evitados foi batizado como Clube Ginástico de Juiz de Fora,trocando sua diretoria composta por alemães e seus descendentes, por Caetano Evangelista , que durante 43 anos permaneceu à frente do clube, levando o nome da cidade e do esporte local para o país inteiro. Foi o embrião de todos os demais clubes que hoje temos por aqui, aliás, o Ginástico foi o primeiro clube de ginástica em Minas Gerais, pioneirismo que naquela época era uma prerrogativa da cidade, posto que aqui,temos a primeira usina hidrelétrica da América do Sul. Época em que a cidade era denominada a "Manchester Mineira" exatamente por conta de suas indústrias tais como: Bernardo Mascarenhas,Cia Industrial Mineira, Pantaleone Arcuri, Santa Cruz, São João Evangelista, Cervejaria José Weiss,Cia Dias Cardoso,Cia Mineira de Refrescos, da Tipografia Schimitz,Fábrica de Caramelos e Balas de Cristhiano Horn,Fábrica de Caramelos e Balas A Suíça de Augusto Degwert que tanto nos fizeram ficar com água na boca.

Além dessas empresas todas, ainda por aqui surgiram os primeiros curtumes industriais o Krambeck e o Surerus, além de tantas outras indústrias que foram a causa do crescimento e desenvolvimento dessa amada cidade.Estava tão habituada a circular nesse universo industrial que anos mais tarde sofri muito quando vi Juiz de Fora perdendo pouco a pouco cada um desses patrimônios.

Mas, não é o momento para as reflexões ainda estou ali circulando em meio às ruas e empresas vendo minha mãe, armada de telas e pincéis desenhando as pessoas e paisagens daqueles pedaços que tanto nos eram familiares.Pobre de minha mãe, que com seu otimismo ainda pensou que eu pudesse conseguir desenhar alguma coisa, mas logo desistiu, assim que viu que minha capacidade para usar o lado direito do cérebro nessas artes, era quase nula, não saía nem um círculo com compasso.Mas, minha irmã veio anos depois suprir essa lacuna familiar.Confesso que foi um alívio, alguém para manter o acervo do clã nas artes plásticas.

Voltando às lembranças, também tinhamos a gloriosa presença da Familia Simões, com Martinha, minha amiga, quase irmã, que andava comigo por todos os lados do clube e da cidade suprindo minha vontade de ter irmãs de sangue, porque eu sabia que jamais poderia tê-las.Nessa época ainda não havia nascido a Karla, que um dia veio trazer felicidade para nossa família, minha irmazinha caçula. Nessa época via , com inveja, a minha xará, irmã da Marta, nadando como um peixe e eu ainda mal sabia entrar numa piscina, por mais que fosse incentivada pelo "Seu" Miranda, a coisa desandava.Até hoje a Vera, minha xará pratica esportes e continua sendo uma campeã e sai por ai amealhando medalhas mil pelo Brasil e pelo mundo e eu continuo com inveja!

Dessa época e local, herdei a amizade da Valéria, a pessoa com os olhos mais lindos que eu ja conheci na vida, pareciam duas pedras preciosas, cujo avô, Francisco Queiroz Caputo dedicou uma vida inteira a manter o clima ali naquele clube, harmonicamente, para que as famílias da cidade se reunissem e praticassem esportes de uma forma saudável e feliz. Tantas boas recordações desse tempo e das amigas das quais nos distanciamos e... às vezes nunca mais temos noticias.

Passava também, diariamente, em frente à igrejinha que deu nome à turma mais barulhenta que essa cidade conheceu :São Roque. Embora houvesse muita agitação em torno da Paula Lima, meu pedaço de rua, acima da João Pinheiro, era quietinho, quietude essa, só quebrada pelos gritos da criançada que brincava no meio dela. Não posso negar, eu era feliz e sabia disso!!!

Fazendo parte desse almanaque de felicidades,como todas as crianças e jovens de meu relacionamento, outra lembrança que "grita" profundamente em mim são nossas férias de Janeiro e Julho em Cabo Frio. A primeira vez em que por lá estive,a cidade ainda era mesmo como uma colônia de pescadores.O caminho para praia, era de areia e rodeado de pés de caju e pitanga.Iamos colhendo pitangas ao longo do caminho e colocando em baldes para aproveitarmos seu sabor, entre um mergulho e outro.A cidade era, para nós crianças, uma festa constante, porque dormiamos cedinho, mas era uma "luta" para nossos pais, que enfrentavem filas enormes para comprarem qualquer coisa por lá,sem contar que a energia eltrica era cortada às 22 horas e os adultos levavam lampiões para poderem jogar um baralho nas noites cabofrienses.Quando vejo a cidade hoje, nem de longe eu, menina, poderia imaginar que essa cidade estaria nesse porte, alguns anos depois.E ai eu volto ali na inauguração do edifício Minas Gerais, onde , pela primeira e última vez, comemos uma tartarugada, não pelo gosto do bichinho, mas pela luta pela preservação dos animaizinhos simpáticos.Cabo Frio sempre foi nosso quintal e hoje quando vejo meus netinhos correndo pelas praias comigo, sei que um dia terão boas lembranças dessa vovó meio amalucada brincando com eles.

Mas, retornando ao tema em epígrafe,assim com esses olhos cheios de uma rua serena e tranqüila vendo a minha nova moradia,ali, no centro nervoso da cidade.

Estávamos vivendo momentos onde o país passava por umas mudanças, que eu ainda não conhecia direito e nem poderia imaginar as consequências disso tudo.Jânio Quadros, havia renunciado em agosto de 1961 (após uma campanha que deixava a criançada com o peito cheio de vassourinhas e espadinhas douradas distribuidas pelos comitês eleitorais de Jânio e Lott), deixando o país atônito, dando como justificativa o famoso e folclórico:"fi-lo, porque qui-lo"!! Para contornar a crise o sistema de governo deixou de ser presidencialista e tornou-se parlamentarista. João Goulart toma posse como presidente e Tancredo Neves, como primeiro ministro. Em janeiro de 1963, um plebiscito fez o Brasil retornar ao presidencialismo, e João Goulart adquiriu plenos poderes para governar, atraindo para si uma plêiade de descontes.

Mas, como eu dizia, estávamos em 1962 e fascinada, cheguei na sacada de único prédio da rua Assis assistindo a um espetáculo de vida com o mesmo interesse de um bebê recém nascido ao encontrar pela primeira vez os dedos de suas mãos... para que serve tanta coisa meu Deus?? Cedo descobri que naquele pedaço torto de rua tínhamos a mais cosmopolita das civilizações... Ahhhh, pequena galeria, que amostra grátis o mundo me serviu, de humanidade e humanismo!!

Alí em frente à minha janela se descortinava o mundo, uma legítima senhora representante da valorosa colônia italiana que aos gritos cantava tarantelas ocupava a casa 10 e, lá na frente havia um senhor cuja lavanderia também servia de casa para si e sua família, (ainda não entendi como conseguiam morar 12 pessoas em lugar tão minúsculo, parecia aquelas experiências que se faziam em gincanas...quantas pessoas cabem lá e acolá??).

Pois bem, daquela primeira casinha conheci de perto o Joãozinho, sempre alerta, porque era escoteiro Aymoré, como meu pai, Ernani Ciuffo, que do grupo foi fundador juntamente com Darcy Malta, Mário Marques de Almeida e outros tantos que esta memória não consegue alcançar sem ler a placa lá na sede afixada.

Bem, estávamos em 1962, e da grandeza de meus 12 anos pude verificar que aquela ruela não era um espaço qualquer, sabia que poderíamos encontrar muitos tesouros atrás daquelas paredes e,literalmente, poderia perscrutá-los, pois, da varanda de meu quarto via as casas todas de uma perspectiva interessante e ainda por cima podia ver os fundos da Casa Petrus, tradicional casa de tecidos e moda, que aparecia garbosa. na Rua Marechal Deodoro,onde moravam os Hallack, que para mim trazia o mais próximo um representante:o então menino, André.

Ah! Galeria Assis, de cuja casa 1 saiam as curvas morenas da Regininha, (que tanta inveja me causavam posto que magérrima como eu era, nem uma curva percebia-se em meu corpo, hoje eu percebo o quão tolinha eu era, haviam curvas em mim, e eu nem me dava conta disso!!!!). "Seu" Odorico e Dona Nair, comandavam a prole desta primeira casa.

As vozes da família Mauler cuja cantoria enfrentava o auditório da PRB-3, no "programa do tio Teteco": Márcio, Marilene e Marília num grupo de tantos Ms . filhos de Martim e Dalila Mauler, fazendo sucesso absoluto nas paradas musicais, legítimos representantes da casa 04. Carinhosamente recordo-me que Marina, foi partícipe comigo, no grupo de Bandeirantes denominado "Aracy Muniz Freire", e na patrulha "Flor de Liz", ocupamos a mesma barraca no primeiro acampamento de nossas vidas.

Consertavam-se bicicletas na casa 02, pois ali estavam os Bellini, “experts” neste ofício até hoje... e mais, muito mais...

Dona Brígida, dona da loja de tecidos, tinha em seu filho Ronaldo, hoje engenheiro, um dos mais agitados do grupo infanto juvenil daquele pedaço de rua.Na loja contigua à dela, estavam o bar e barbearia, dos Morais,onde moravam na sobreloja os irmãos: Altair, Altamir, Altaísa e Marisa, hoje todos, prematuramente falecidos. O Interessante é que deste grupo tão eclético sairam alguns casais, alguns namoricos pueris e até casamentos.

Além destas pessoas, todas das casinhas que povoavam meu imaginário, havia aquele indefectível som de: “Atenção, senhores passageiros com destino à Volta Redonda, Barra Mansa, Aparecida e Sãooooo Paulo, queiram ocupar seus lugares e boooooooa viagem”, nunca mais saiu de minha memória esse alerta,afinal, o ponto de partida da Viação Cometa era ali mesmo tão pertinho, na esquina com a Getúlio Vargas.A proximidade com essa parada dos ônibus da Cometa, nos proporcionavam momentos em que nos sentíamos próximos a ganhar o mundo...São Paulo, que maravilha, na minha cabeça parecia melhor do que Paris, Roma, ou qualquer lugar destes por aí, até parecia que estávamos em um importante aeroporto, e naqueles momentos nossos sonhos viajavam céleres no ruído dos motores daqueles ônibus amarelos, cujo padrão se mantém até hoje!

Se caminhássemos um pouco mais para a esquerda, encontraríamos a Farmácia Imperial, cujos proprietários eram meu pai e o Lessinha, pavor das crianças que ali tomavam suas injeções. Ao lado da farmácia havia a DUCAL, onde os famosos ternos de duas calças ficavam expostos com fotos de Tarcisio Meira e Glória Menezes, que nos remetiam aos anúncios de televisão enaltecendo as vantagens do tergal e do nycron, além das camisas "volta ao mundo" que matavam de calor quem as usasse, embora fosse a moda corrente, remetendo -nos, telespectadores ao famoso, anúncio que ia e vinha na tela: DUCAL!DUCAL!DUCAL!!! E , se continuássemos o caminho havia uma mercearia do "seu" Araki, e sua numerosa família, havia Helena, a filha mais velha, representante da beleza nipônica naquelas plagas.

Os pães mais fresquinhos e perfumados que ja conheci na vida,e a memória olfativa jamais nos falha,eram feitos na Padaria Modelo, onde ficavamos ali escolhendo as guloseimas que, certamente, como diziam nossos pais, atrapalhariam nossas refeições.

Mas, se fôssemos para o lado direito da rua, aonda na Getulio Vargas, teríamos a Drogaria Silva, a precursora das farmácias de manipulação na cidade, quiçá no estado. A figurinha simpática do "Seu" Jaime, sempre atencioso, sempre cortês, sempre com uma indicação certeira para os males do corpo, às vezes da alma também.Os móveis antigos ainda permanecem por lá, como um atestado confirmatório às nossas lembranças.Hoje, por um desses desvios do destino, quem comanda e expande a Drogaria é meu sobrinho Glauco, que a herdou de seu pai Saturnino Fabre, após a morte prematura do mesmo.Mantendo a tradição dos móveis antigos e aliando ao atendimento a modernidade do empreendedorismo. Ao lado da drogaria, compravam-se cadernos, folhas, material de escritório, na Papelaria Simas, onde uma família inteirinha, esmerava-se em bem atender aos clientes.

Entretanto, um belo dia eis que aparece naquela galeria, um pessoal da prefeitura, avisando-nos de que iriam abrir a passagem para a Avenida Rio Branco (apesar de que, nós , através da forma pueril, conseguir por um minúsculo buraquinho no muro, fugir para o outro lado sem que os adultos soubessem, ou pudessem, nos alcançar). Na parede colocaram uma placa já com o nome pomposo de Rua Assis. Pronto, acabara a magia daquele pedaço de rua sem calçamento, quase particular para todos nós.

RUA ASSIS – FASE II

Calçaram nossa rua, colocaram alguns paralelepípedos, derrubaram o muro que transformava aquele espaço em propriedade particular de pelo menos trinta ou quarenta pré-adolescentes e jovens.

A Rua Assis descortinou-se para nós como um atalho para a maior avenida da cidade,a Rio Branco, e mais ainda, um espaço maior para a diversão de todos, não havendo mais a barreira dos muros mas, a alegria durou pouco, no espaço aberto instalaram-se como num passe de mágica duas oficinas mecânicas onde sua “edificação” em taipás pintadas em um azul intenso nos deixavam ver através dos portões mal fechados os carros e o material ali usado para trabalho dos mecânicos e, mais tarde um enorme estacionamento por ali também foi instalado.Onde hoje é um shopping, o tal estacionamento, algum tempo depois, foi palco de um dos maiores mistérios policiais de Juiz de Fora, o seqüestro do Ernani "bicheiro", assim chamado por suas atividades "profissionais".A última vez em que foi visto, saiu em um carro na nossa famosa rua e nunca mais foi visto.

Com o advento da abertura da rua pudemos descobrir o lado avesso do prédio dos Correios e Telégrafos, onde em noites de maior tranqüilidade conseguíamos conversar com o Eden Grünewald, que era responsável pela entrega dos telegramas que nos chegavam... era um trabalhinho árduo aquele de correr pelas noites de inverno levando notícias nem sempre prazerosas para as pessoas, mas ele desempenhava esta tarefa com maestria e sempre era uma felicidade quando estávamos comemorando alguma coisa e ele vinha nos trazer telegramas de felicitação... Bons tempos em que telegramas sombrios só eram lidos pelos adultos!

Descobrimos que o prédio do IAPI também tinha avesso, uma beleza de prédio para nós, muito alto, como ponto de observação que tínhamos de nossa pequena e estreita viela. Para quem estava acostumado a ver apenas o prédio do Bradesco e o Edifício Primus como pontos cardeais, ficou evidenciado que estávamos caminhando para o progresso. Ali também, havia o avesso das Casas Regente, um prédio todo verde!!!

Entretanto, o tempo foi passando e quase que imediatamente, descortinávamos uma galeria nova surgindo em frente ao nosso prédio. Com a abertura da Rua Assis também descobriu-se que a galeria do IAPFESP poderia servir de ir e vir para um dos marechais, o Deodoro da Fonseca. Nascia a galeria Ítala e com ela a perspectiva de estarmos mais próximos do cine Central, do Pálace, do Raffa's, da Galeria de Arte Celina, além é claro, do “footing” na rua Halfeld nas tardes de domingo.

Estamos na época dos "ban lons" coloridos,das saias rodadas, anáguas engomadas, dos bailes de debutantes, no auge dos odores a la "heure intime", fleur de rocaille" ,"cashmere bouquet", que as meninas deixavam no ar ao passarem por jovens moços de cabelos enormes, de topetes engomadinhos e com o indefectível "lancaster" no ar, andar pela rua Halfeld aos domingos era programa quase obrigatório e o prenúncio de ,mais tarde, estarmos todos dançando nas soirèes promovidas pelos DAs de Engenharia, Medicna, Odontologia e outras faculdades. Normalmente, os mais concorridos eram os da Engenharia, que formavam o grupo de universitários mais irreverentes da cidade o que fazia com que nós esperássemos pelo desfile dos Jogos Universitários, onde os alunos esmeravam-se em apresentar figurinos, quadros históricos, esmero esse que lhes rendia pontuação e o troféu de melhor apresentação do desfile. Entretanto, os alunos da Engenharia, normalmente encerravam o desfile, da forma mais irreverente, bizarra e atrapalhada que conseguiam,o que lhes rendia sempre, a desclasificação,mas eram sempre aplaudidos em meio aos risos e espanto que causavam.

Desses passeios pela rua Halfeld aos domingos, jamais me esquecerei de alguns fatos engraçados lá ocorridos: o primeiro foi de uma amiga nossa que estando com as saias rodadas, lindamente recheadas por uma anágua que lhes abria em rodas os babados, andando serelepe pela rua, quando, de repente, rompe-se o botão que fechava a engomada peça que lhe se servia de apoio, ela, simplesmente, vendo a anágua cair, deixa que a mesma role pela rua, passa por cima da peça e continua andando como se nada houvesse acontecido.Atrás dela vinham seu pai e duas irmãs dela...nesse momento o pai dela, senhor de cãs grisalhas, ar senhorial, recolhe a peça e continua andando pela Halfeld, com cara de pai de noiva conduzindo a filha para um cadafalso!(Mais tarde ele alega, que não iria deixar aquela peça que custava muito caro ali, no meio da rua).Seguiu o cortejo: ela na frente, com seu vestido de babados murchos e o pai herói carregando a peça engomada nos braços e as irmãs da moça sumiram , foram ficar a uma distância segura de tal espetáculo.Creio, que ela tenha ficado cerca de uns seis meses sem aparecer pelo centro da cidade!!!!!!!

O segundo fato, aconteceu comigo.Estava eu ali pela rua, no inverno um frio terrivel, quando ao passar por um grupo de rapazes, quase em frente ao Cine Pálace, o saltinho fino de meu sapato agarrou em uma pequena fenda do passeio...isso provocou um tombo terrível.Ao cair eu escutava as gargalhadas de todo mundo e pensei em milésimos de segundo: levantar, jamais!!!!! Fiquei no chão, olhos fechados, inerte.Aos poucos as gargalhadas transformaram- se em murmúrios aflitos,minhas colegas me batendo no rosto e os rapazes, subitamente, aproximam-se, oferecem ajuda, pegam uma cadeira no Internacional Lanches, trazem café,e... sentem minhas mãos frias, meu rosto gelado( afinal era inverno, não é mesmo?) eu um tanto "desorientada", até que um desses "heróis" resolve me levar para casa, NO COLO.Coitadinho do moço, chega na Mister Moore, comigo, sobe três andares (ainda bem que sempre fui magra) e me entrega a um pai assustadérrimo e em meio a explicação das minhas coleguinhas, começa a providenciar o socorro.Assim que o rapaz sai, eu consigo, finalmente, dar a maior gargalhada de minha vida!!! Quase apanhei la em casa, mas evitei um enorme vexame.Imaginem...eu me estabacando pela rua Halfeld, domingo 17 horas, lotada de moças e rapazes, mas, NEM MORTA!!!!Consegui me safar por lá, mas ganhei 15 dias de "castigo" sem sair de casa pelo susto dado aos meus pais!!!Mas, valeu à pena!!!!!

Sem que me cobrem cronologias, novamente, mais um braço estende-se para a Marechal Deodoro. A dantes fechada Galeria Hallack, onde estava já fincado o Bar do Futrica, fica mais acessível, para que pudéssemos degustar a sua famosa pizza. Sai a oficina do patriarca dos Mauler, onde eram pintadas placas, letreiros e as faixas, com seu caracteristico odor de tintas, abre-se um novo caminho para nós os jovens da antiga Rua Assis.

Estávamos em 1963, quando nós, alunos das diversas escolas da cidade, recebemos um convite para participar de um evento sensacional promovido e escrito por José Carlos de Lery Guimarães e João Beraldo, chamado:Cristo Total.Talvez, na época o maior evento de massa que essa cidade havia presenciado, então, essa peça teatral ao ar livre com uma moderna visão da Semana Santa, explodiu no coração da cidade e provocou um movimento espetacular e emocionante, notadamente, entre nós, os participantes, que nos vimos ali, no gramado do Sport,como verdadeiros astros hollywoodianos.Realmente, o espetáculo marcou a cidade, tanto que todos os que viveram naquela fase, jamais esquecerão.

O ano de 1964 entra glorioso,para mim, porque marca meu baile de 15 anos.Em janeiro , assim logo no princípinho é meu aniversário.Antes de falar sobre o baile, há que se tecer consideração sobre quem faz aniversário no inicio do ano.Causa ao longo de nossa vida uma frustração terrível.Fazer aniversário assim, no inicio do ano, significa que:os amigos estarão todos fora da cidade, em férias e que fatalmente, vai chover!!!!Poucas eram as festinhas que consigo me lembrar em que São Pedro não houvesse contribuído com um chuvisco, ou mesmo um temporal.

Mas, voltemos ao baile.Meus pais optaram em fazê-lo ali na Rio Branco, 1909, endereço conhecido por causa do Cinema Exclesior, inaugurado no final da década anterior, em cuja sobreloja, funcionava a Sociedade Auxiliadora Portuguesa.Para minha felicidade plena, não choveu e todos os meus queridos compareceram.Entre orquideas, amigos e amigas queridos, dancei a valsa com meu pai, mas antes troquei o sapato baixo, pelo saltinho alto, uma espécie de ritual que denomina que a menina ,finalmente, estava transformado-se em uma jovem mulher. Emoção indescritível.Hoje , quando vejo minhas fotografias, emociono-me vendo gente tão querida que se foi por algum motivo, seja por morte física, ou pela morte do tempo que nos separou.

Mas, voltando um pouco ali no tempo, o Excelsior traz para mim, deliciosas recordações.Quando entrei naquela sala pela primeira vez, foi para uma apresentação do filme " O Rei e Eu", com os inesquecíveis: Debora Kerr e Yul Brynner nos papéis principais.Em 1958, se não me falha a memória, assim que ele foi inaugurado. Essa apresentação foi uma promoção de tradicional marca de sabão em pó, que chegava inovando com uma nova cor azul para se lavar as roupas.Havia uma pergunta a ser respondida e todos os que estavam na plateía deveriam respondê-la para concorrer a varios prêmios.Eu estava com minha avó materna, Floripes, que brigava o tempo todo comigo porque eu respondi que a cor era azul...porque na cabeça dela, sabão azul em pó não existia.Estava acostumada com o sabão Rinso ou Lux..Mas, eu , teimosamente , respondi e ganhei um kit com o tal produto,é o sabão azul que lava mais branco, segundo diziam.E o nome estranho do tal sabão em pó, era exatamnte o nome de uma coruja, a mãe coruja, certamente, como uma alusão ao bem lavar e aos cuidados maternos com as roupas dos filhotes...boa lembrança essa. Ao entrar naquela sala fui tomada por um deslumbramento ímpar... ver aquele espaço decorado de forma tão primorosa, com um bom gosto incrível, uma iluminação magnifica com teto e paredes que eu jamais havia visto, posso viver o quanto for, nunca mais se apagará de minha memória esse primeiro contato com o Excelsior.Foi amor à primeira vista.Ali, naquele lugar vivi emoções variadas, ri , chorei, encontrei amigos, terminei namoro, reiniciei outro, enfim, como diria o RC:"o importante é que emoções eu vivi". Agora ficamos sabendo que o cinema está sendo desmanchado, no sentido literal da palavra; dizem que vai se transformar num estacionamento, ah, que tristeza, um lugar arquitetonicamente tão lindo...vai virar um depósito de carros, em vez de ser um repositorio de cultura e lazer para o qual foi criado. Chamam a isso de progresso, mas para mim tem outro nome:descaso.

O tempo corre célere e 1964 ainda nos reservaria outras emoções. De repente um som estranho nos despertava em meio à madrugada, era um som diferente da alegria das músicas do conjunto Raffa’s que ouvíamos. Ficávamos a imaginar como deveria ser bom crescer, para poder dançar na penumbra daquele espaço os boleros e os samba-canções que nos embalavam todas as noites.

Mas, não era um ruído conhecido...nem era a música... era um som até então desconhecido para nós. Na madrugada, todos nas janelas, eu e principalmente, com minha amiguinha Jardete, companheira de conversas, pois tínhamos janelas contíguas, aventureiramente, com muito frio, observando os tanques na Av. Getúlio Vargas rumo ao Rio de Janeiro. Manobras militares pensaram os adultos, que coisa mais estranha acordar em noite de véspera de prova com essa confusão toda , ainda mais com o solo estremecendo como se passassem por ele o medo, a ansiedade e a apreensão.

Na manhã seguinte, impedida de seguir para o colégio por um guarda armado até os dentes que se postava em frente à sede dos correios, descobri que ganhava um feriado: “aula hoje não menininha” me disse, o soldado por trás da metralhadora, “volte para a casa”; quando pensei em argumentar que ninguém faltava a uma prova impunemente, ele nem conhecia bem minha mãe, eis que surge meu pai esbaforido, os olhos do "velho" Ciuffo brilhavam de ansiedade já vinha me apanhar devolvendo-me para a segurança da casa onde, pela rádio ouvíamos o Carlos Lacerda gritar, incentivar Mourão Filho, exortando patriotismos e...tanto falatório que nem bem sabíamos o que acontecia. Só me lembrava de que era madrugada de 1º de abril de 1964 ( embora jurem que o golpe se deu em 31 de Março, acho que com medo dos gracejos que se ouviriam pelo "dia da mentira"), minha prova mais temida, a de matemática havia sido adiada, só não sabia ainda que muitos sonhos começavam a ser adiados a partir daí, nem sabia que começava uma nova era para a rua Assis, para nós e para o Brasil; eu assistindo da varanda de meu quarto os tanques passando, ouvindo a queda de Jango pelo rádio. E mais tarde sendo exortada a cumprimentar com bandeirinhas brasileiras lá na Escola Normal a chegada gloriosa das tropas da 4 ª Região Militar quando retornaram do Rio de Janeiro, onde foram “defender” a democracia nacional, à revelia me tornei testemunha de tudo isso naquela madrugada fria.

Lembro-me de que surgiu na época uma marchinha que era cantada displicentemente por nós, que ignorávamos até então as consequências daquilo tudo. A tal marchinha dizia: "Mourão, Mourão, cabra duro que nem pau, Mourão , Mourão, cutuca no Jango que ele cai".

Nas tropas que seguiram para o Rio, estavam alguns amigos meus, rapazes quase imberbes, que se transformaram em heróis/vilões daquela parada no Maracanã, onde foram lançados ao chegar à Cidade Maravilhosa. Interessante, anos mais tarde, ao ouvir uma versão de um dos que lá estiveram, meu “irmão” e amigo de sempre, Genin Malta , descobrimos a realidade da estada dos meninos por lá. Disse-nos ele: “o Maracanã todo às escuras por questões de segurança e não sei se pela tensão emocional despendida, o medo contido, ou, se foi a comida, o fato é que todos os banheiros do estádio estavam permanentemente lotados e ficaram assim a semana inteira... O Maracanã, nosso orgulho nacional era uma imensa latrina militar.” Nada mais profético do que essas palavras do meu amigo/irmão que aos 18 anos estava lá no começo de tudo e depois , já morando fora do Brasil e sem lágrimas, pode nos contar, para que acrescentássemos em nossas memórias o quão sujos e sombrios foram os porões daqueles dias, mesmo em seu nascedouro.

Entretanto, mesmo vivendo tais momentos estranhos, o fato de continuarmos ligados ao esporte, meu pai jogava tênis e viajávamos muito, conheci naquela época o Minas Tênis Clube, o Tijuca Tênis Clube, o Petropolitano e muitos outros e enquanto ele jogava eu ampliava meus relacionamentos com as demais meninas e meninos dessas cidades.Alguns deles, ainda estão por aqui, sabemos uns dos outros, hoje pelo milagre da rede mundial.

Era estudante da Escola Normal,então, e,novamente,fomos convidados para uma peça ao ar livre, escrita pelo genial José Carlos de Lery Guimarães, o nome:Aquarela do Brasil. Essa peça foi executada na abertura de um campeonato de volei, se não me falha a memória, assim como fazem esses shows na abertura de copas, ou olimpíadas.Esse espetáculo teve que ser repetido no sábado seguinte. Foi uma beleza. Uma empolgação aquelas noites no meu clube do coração.Novamente, vivemos uma noite de gala e ainda ouço as músicas com as quais participei, representando a Bahia, com um lindo vestido de babados brancos, turbante e ....colares e pulseiras feitos de canudos, desses usados para refrigerantes, que faziam um enorme efeito brilhante sob os holofotes do campo.Também, trago na lembrança as músicas executadas pelo batuque afro brasileiro de Nelson Silva, que me deixaram em êxtase.Esse espetáculo, foi mesmo um oásis, naquele deserto onde estávamos penetrando politicamente.Minha mãe, apaixonada por volei, me levava em todos os jogos.Aprendi todos os bordões de torcidas, publicáveis, ou não.

Estranha sensação agora me acomete ao lembrar-me daqueles dias em que nós ainda não havíamos percebido o quanto haveria de transformação em nossas vidas. Mas, seguindo este roteiro a rua Assis transforma-se também e é rebatizada com o pomposo nome de um ex-reitor Granberyense o sempre respeitado W. H. Moore e assim passando a ser chamada de Mister Moore. Nada mais sem propósito em nossa cabecinha, afinal nenhum americano morava naquela galeria cosmopolita.

RUA MISTER MOORE – FASE III

Lembrar a data correta certamente não há como, mas o dia da semana inequivocamente era um domingo. Meu pai havia feito a massa para o macarrão dominical, e o perfume do molho que minha mãe fazia e eu nunca soube repetir com tanta eficiência, ainda permanece em minha memória olfativa. Da famosa varanda do meu quarto de onde se descortinava a rua inteira, observei um movimento interessante próximo à esquina da Av. Rio Branco,estavam lá várias pessoas e um grupo de escoteiros e lobinhos.. Falar em escoteiros? Desci para ver quem eram aquelas criaturas fardadas, afinal eu na minha santa ingenuidade acreditava que conhecia todos eles, ou seja: colocou farda escotista, era amigo. Fui lá conferir, curiosa como sempre, alguns diriam xereta, mas eu prefiro o codinome curiosa da rua Assis. Era exatamente a cerimônia de inauguração da placa com o nome de Mister Moore, os escoteiros não eram Aymorés eram de outra tribo: os Caiuás. Aí descobri que nem todos os escoteiros fardados da cidade eram como eu egoisticamente acreditava, propriedades de meu acervo fraterno. Mas assisti ao descerramento da placa ouvi discursos falando da figura e do desempenho do homenageado e achei uma loucura falar o nome da minha rua para os outros. Era interessante verificar que o tal mister viraria em pouco tempo, moure,moura,môr, sei lá mais quantas nomenclaturas, menos o correto, porque no inglês de “book on the table” da maioria de nós brasileiros naquela época, querer extrair uma pronúncia correta daquele nome era exigir demais.

A mudança do clima político, do nome da rua, causou muito mais do que uma lembrança cravada em meu cérebro como uma espada, ela trouxe o progresso que não estava compatível com tantas casinhas dispostas em avenida, bem no coração da cidade. Aí vi da famosa varanda saírem daquelas casinhas simpáticas os móveis e as pessoas, uma a uma, e ergueu-se ali o primeiro prédio. Enquanto a obra subia, a gente aguardava ansiosamente por quem iria ocupar os apartamentos? A curiosidade aumentava quando o proprietário trazia a família toda para visitar o andamento da mesma. Uma família grande, pessoas com olhos claros, cabelos loiros, com seu patriarca de ar soturno, a matriarca de sorriso aberto e simpatia irradiante... eram os Estiguer que chegavam para enriquecer o movimento de nossa recém nomeada rua.

Era interessante poder ver pessoas de um ponto de observação quase horizontal, eu e minha vizinha, estávamos acostumadas a ver as casinhas lá em baixo, e começamos a ver os que chegavam, num mesmo plano.Este mesmo plano, a varanda mágica,me fez encontrar através de trocas de olhares, o amor, e também nos permitiu receber das mãos de alguns estudantes da república ao lado, a literatura na época pecaminosa a nosso ver, de Jorge Amado e seus Capitães de Areia, seguida bem de perto das proibidas ideologias de Marx e cia, das folhas amassadas do jornal "Novos Rumos" que passava de mãos em mãos, de forma cúmplice pelos meninos da pensão, estudantes universitários. Nesta mesma varanda onde recebíamos serenatas ao som da "Deusa da Minha Rua"(pela voz suave do Márcio, um dos "m" da casa 4),também, começaram a surgir as notícias escabrosas do desaparecimento de alguns amigos e percebemos também que não nos chegava mais nem uma carta, nenhuma encomenda, sem que houvesse sido consultada antes por alguém.Cheguei a suspeitar de minha inocente mãe, mas depois concluímos que outros olhos liam nossas cartas, não só os da mãe zelosa, eram os olhos do "poder", além de escutarmos uns cliques estranhos nos nossos telefones. Aprendemos a não usá-los, a não ser para as "fofoquinhas" casadoiras!

Mas a grata surpresa daquele ponto de visão que lhes trago foi a chegada dos Costa. Uma festa musical para a neo batizada via , pois através de sua matriarca D. Aparecida, a grande maioria dos alunos das escolas públicas aprenderia solfejos e letras de hinos que indelevelmente permaneceriam em nossa memória. Sueli, a filha mais conhecida destaca-se pela cidade, região e depois pelo país através dos festivais de música, ela mesma que tem "alma nem sempre serena em corpo moreno". Ah, não me queiram cobrar cronologia, apenas deixem rolar as lembranças que vão acontecendo na medida em que as mãos dedilham o teclado...

Voltando aos festivais de música, do primeiro em Juiz de Fora, só trago a alegria de ouvir orgulhosamente o Convite Amigo de Ernani Ciuffo ser entoado no palco do Theatro Central, pois como dizia o autor, “...quem canta está sempre feliz, e pelo menos aparentemente a tristeza nunca está presente...” Nesse mesmo festival estavam no palco os nossos amigos compositores, da geração de meu pai e da nossa geração. Tateando pelas lides musicais estava ali para meu orgulho além de meu pai e seu convite, o Genin, meu amigo quase irmão, cujo sorriso encantava meus olhos. Estava ele ali com sua composição em duo com Messias, engatinhando em uma vida musical que mais tarde, por caminhos transversos, o colocou parceiro de meu pai, em cuja letra de despedida , traz uma melodia inspiradora que me transformou em responsável por essa parceria. Além desses, minhas vizinhas da familia Costa, desfilavam pelos palcos, Sueli e Oceano Soares em seu "Carro de boi", vozes iniciantes, faziam-se explodir nos palcos.Enquanto as canções vão sendo entoadas, mudando as regras do jogo com seus hinos e trombetas, os cavaleiros apocalípticos iam cada vez mais trazendo transformações na pacata viela Moore e, a cada dia víamos junto à demolição de nossos sonhos democráticos a demolição das casinhas que tanto nos inspiravam.

No prédio ao lado do meu ganhamos uma vizinha muito linda de longos cabelos negros, sorriso largo, chama-se Leda e de seu pai Amim herdou a firmeza de caráter dos Nagle. E neste momento percebi que aquela rua não mais seria a mesma, histórias para contar teríamos infinitamente. Onde se poderia ver descortinar um mundo através de varandas? Onde mais se poderia juntar uma plêiade de artistas como os Costa, os Mauler e Ernani Ciuffo? Onde mais teríamos um ponto para projetar no futuro o espanto daquela menina morena e bonita, o medo pelo destino do priminho jornalista? O outro Nagle, o Fernando, o Gabeira? Pois bem nesta rua tão pequena e ainda tranqüila sopravam ventos premonitórios de que para a grande maioria daqueles jovens a vida jamais iria ser comum ou rotineira!!!!

Nesta hora começam a aparecer as transformações, acabou-se o IAPI, o IAPFESP e tudo se transformou em INPS, as placas e letreiros mudaram radicalmente como o modelo previdenciário, e nós acompanhamos meio sem entender a revolta silenciosa dos trabalhadores que aparentemente não acreditavam que aquilo iria funcionar, hoje sabemos que não funcionou, que foi a falência do modelo previdenciário de então, que culmina no modelo SUS, que é visto hoje como projeto que funciona no papel, mas que promove a maior injustiça social que esse país conhece... a de por meio de mandatos judiciais, escolher, quem vive, quem morre, nas longas filas que se arrastam pelos postos de saúde(sic) e hospitais públicos.

Mais uma galeria começava a ser aberta, mais uma ligação com o marechal Deodoro. Menos privacidade para a rua Moore e víamos acabar também o sossego de se brincar na rua os carros passavam a fazer parte integrante do movimento. Mas em contrapartida, os sons da casa dos Costa continuavam a povoar a rua, da caçula Telma até aos mais velhos podíamos ouvir extasiados os saraus que tanto nos encantavam, o mais interessante é que aparece ainda para mim a mistura dos sons aliadas aos odores convidativos da Fábrica de Doces Brasil, que no imaginário de todas as crianças era a maior fábrica do mundo. Que inveja daqueles irmãos que tinham sob os pés o paraíso, e nem pareciam se importar muito com aquilo!

E as transformações radicais começam a acontecer, no mundo,no país,nas nossas ruas pacatas e em nossas vidas.

Ali ao lado,entretanto ,havia na galeria Pio X um foco cultural resistente aos desvios que nossa vida política tortuosa enfrentava. Naquela galeria estávamos vendo o florescer da Galeria de Arte Celina, criação genial dos não menos geniais Bracher, que homenagearam de forma carinhosa Celina Bracher e que de forma contundente permanece no contexto mental da historia da vida de nossa cidade cultural, como um espaço democrático para todos nós. Nesse espaço,naquela galeria mágica,estudávamos,discutíamos cinema com Rogério Bitarelli,Décio Lopes nos desvendavam os segredos da filmagem com super 8 , e lá estavam para nosso deleite nas telas, os filmes que fizeram a historia da cultura cinéfila mundial, de Buster Keaton, Chaplin ao cinema novo brasileiro.

A então garota,deslumbrada começa a perceber que mesmo sob o véu da repressão,poderíamos ainda respirar e transpirar descobertas e criatividade crescente em nosso caminho! Como se produziu arte naquela época, quão efervescentes eram nossas mentes e almas!!!

Sair da galeria de arte ...passar pela cultura inglesa,perscrutar as livrarias Zappa e Vivianni, ouvir os sons das leiterias e cafés ...sentir o sabor da sopa do Faisão Dourado...tudo isso era alegria da menina moradora da Rua Mister Moore!

Então,começo a me preparar para enfrentar o vestibular na FAFILE,na tentativa de chegar ao topo do podium e subir as escadarias de madeira daquela famosa casa do alto da Avenida Rio Branco.

E chega ,finalmente o dia do vestibular!!! E para surpresa de todos, principalmente, minha surpresa, consegui em 1969 passar como primeira e única colocada no vestibular para Geografia e aquele prédio da Avenida Rio Branco, mais tarde transformado em casa de cultura em homenagem a Murilo Mendes, deixa de ser um sonho e passa a ser uma realidade maravilhosa aos meus olhos quase adolescentes.

Como eu estava na FAFILE, Faculdade de Filosofia e Letras, ganhei de meus pais uma coruja linda, afinal era o símbolo da faculdade. Fiz uma barulheira tão grande com aquela coruja, que meus amigos, nem pestanejaram mais: quando pensavam em presentes, dá-lhe coruja.Fiz uma coleção enorme de corujas, de todos os tipos, formatos e tamanho, símbolo da sapiência e também, mais tarde de minha corujice por meus filhos e netos.

Usando um imponente (aos meus olhos),ou ridículo ( aos olhos dos demais) chapéu roxo entramos pela porta principal da faculdade tão sonhada! Trotes, esperança,alegria,decepções tudo isso nos esperava ao cruzar o portão daquele lugar com ares mágicos do saber.

Um ano depois, todos fomos trasladados para o neo criado campus universitário da UFJF, espremidos nos ônibus lá fomos nós todos, descobrir que São Pedro era mais do que o porteiro do céu, era também um lugar que décadas depois seria quase um ponto turístico citado pelos visitantes da cidade como um dos mais belos locais de Juiz de Fora. A praça do campus serviu até de palco para concertos musicais maravilhosos além de se transformar em local predileto para as caminhadas dos que gostam de manter a forma física . Mas, para nós, os pioneiros, era a saída do centro "praquele fim de mundo", sem conforto...quanta reclamação, ó, estudantes universitários!!

Também naquele campus descobri o que é ser olhada, vigiada, espionada por alguns alunos estranhos que “caiam do nada” em meio às salas de aula, transferidos sabe-se lá de onde , com seus indefectíveis cabelos à moda príncipe Danilo,óculos escuros e bolsa “capanga” nas mãos. Eram tristes anos onde qualquer palavra seria um insulto à pátria mãe e nos levariam ao jubilamento na faculdade até mesmo à prisão.

Nessa época vimos muitos de nossos amigos e parentes enfrentando os corredores da Quarta Região Militar, vimos também muitos deles indo embora e alguns nunca mais retornaram, seja por opção própria, seja por desaparecimento compulsório.

O ano de 1969 não me trouxe apenas a Faculdade tão sonhada , nesse mesmo ano em Setembro, junto à primavera eu recebo uma das maiores dádivas de minha vida, o conhecimento de ser mãe. Nasce meu primeiro filho, de uma série de cinco, que fez com que Jeremias, não aquele “O Bom”, do Ziraldo , mas o Ferraz Lima, meu amigo me dar o singelo( sic) nome de parideira, anos depois.

Contemporâneo desses fatos há o surgimento do Bar do Chanan, reduto do encontro de jornalistas, intelectuais, estudantes e artistas. Em várias ocasiões ele fechava o bar para que todos pudessem deliciar-se com as vozes dos mais variados astros que por la passavam.Ali, naquele acanhado local, surgiram também grandes talentos musicais que se espalharam pelo Brasil e até hoje fazem sucesso, como as irmãs Costa:Suely,Telma e Lisieux, minhas vizinhas.

Mesmo frequentando o Chanan, minha vida continuava entre os livros e as fraldas até que a vida me disse que eu iria mudar dessa cidade por conta de ganharmos a vida, eu e Henrique, pai de meus filhos. Andamos e andamos pelo Brasil e retornarmos uma década depois, já encontrando a cidade bem transformada, e a nossa Mister Moore, perdendo sua característica própria. Nela construíram um shopping, depois mais outro, edifícios se esbarravam na estreiteza de seu espaço. Nossos espaços dantes tão aprazíveis foram transformados num intricado corredor de janelas e gente.Seu perfume dantes característico das cozinhas das casas que ali haviam, transforma-se no odor fétido das ruas centrais de qualquer cidade,onde a população que por ali circula acredita, mesmo, que as vias públicas são grandes lixões, que os rios são depósitos daquilo que não querem mais, enfim... a cidade é o reflexo do mundo onde o desrespeito ao que é coletivo cresce cada dia mais.

A nossa viela, antiga e querida foi "tomada" pelo progresso, um progresso agressivo que lhe tirou a beleza e o charme de pequena viela dos flmes de décadas passadas.

Quando hoje chego na casa de minha mãe, já sou uma avó com um trajeto ne vida muito diferenciado, a Geografia nem passou do segundo ano, fiz algumas incursões em Letras e Serviço Social, mas me tornei mesmo psicóloga, em 1987, depois de retornar ao útero juizforano;na mesma varanda de onde me debruçava menina para ver o mundo passar, de onde vi os caminhões descendo ao Rio naquele março de 1964;de onde eu ouvia os sons do Raffa’s e onde eu via com olhares compridos os meninos que eu julgava os mais belos, recuso-me a ver o que há na frente dela ....prefiro fechar os olhos e deixar meu pensamento voltar e juro que até escuto :“Atenção senhores passageiros da viação Cometa, com destino a Volta Redonda,Aparecida e São Paulo, queiram tomar seus lugares e boa viagem”.

Aí eu vôo , volto aquele tempo onde nossas gargalhadas ecoavam sonoras pela rua, onde o som do violão era um presente, onde o sorriso de meu pai acompanhava o nosso, depois de um dia tranqüilo ...e ai penso: atenção senhores passageiros, com destino à vida plena e bela, com alegrias e tristezas, com sabedoria e erro, com acertos e desacertos,com lembranças boas de se guardar, queiram vir comigo,(pelo menos aqui não dependemos de aeroportos, ou aviões de carreira) e.... FAÇAMOS UMA ÓTIMA VIAGEM!!!