Chegadas e Partidas

Em 2026...

A Lua ainda não brilhava, a noite estava chegando serena e não fazia muito frio. Era o fim do inverno, a temperatura estava agradável. Das flores que antecipam a primavera vinha um sopro de tristeza e de tranquilidade.

E, como habitualmente fazia duas ou três vezes por semana, lá estava Aila, sentada na poltrona num canto da sala, falando por uma “videochamada” com Steve, seu filho. De onde estava ela admirava, pela porta da varanda, o céu de Curitiba.

O jornal, datado de trinta e um de agosto, uma segunda-feira, largado em cima da mesinha ao lado da poltrona, trazia em destaque a notícia “O Brasil dez anos depois do impeachment de Dilma Rousseff”.

No momento em que o relógio, na parede da sala, repetia “cuco - cuco” seis vezes, Aila, com a voz baixa e melancólica, dizia:

— Filho, a nossa Shenok nos deixou. Foi para o céu dos cachorros. Não houve necessidade de eutanásia. Ontem à tarde fui visitá-la. Ela estava calma, sem sofrimento. Lambeu o meu rosto, como sempre fez, apoiou o focinho em minhas mãos e adormeceu tranquilamente. Deixei-a dormindo. Hoje, por volta das dez da manhã, Otto, o veterinário que estava cuidando dela, ligou-me. Não havia mais nada a ser feito. Os rins não mais voltaram a funcionar, o que causou a falência de outros órgãos. Como havíamos conversado na semana passada, a situação era delicada. A Shenok já estava com a idade avançada.

Steve ouvia atenciosamente o que a mãe lhe dizia. Mas nada respondia. Sentado no quarto de seu apartamento olhando pela janela o céu de Luanda, já pronto para dormir, depois de um dia cansativo em que havia pilotado por cerca de sete horas um helicóptero modelo Mi-171A1 de fabricação russa.

Aila, percebendo a quietude de Steve, insinuou dizer alguma coisa para consolá-lo. Mas nada disse. Simplesmente, parou de falar e ficou como cravada na poltrona. Aos seus ouvidos, nada chegava. Os dois abaixaram a cabeça...

No instante em que mãe e filho se olharam na tela do smartphone, foi ela quem o descobriu com lágrimas nos olhos, não ele a ela.

Eles ficaram sentados distantes fisicamente, um no Brasil e o outro em Angola. Mas unidos em todos os outros aspectos. Ora olhavam para o céu e ora se olhavam. E nada falavam.

Enquanto os minutos passavam, Aila, admirando as estrelas surgirem naquele início da noite curitibana, se deixou levar pelos pensamentos às recordações dos momentos vividos junto ao filho...

***

A história que segue ao longo destas poucas páginas retratará o cotidiano de uma amizade entre mãe e filho.

Aila, a mãe, uma descendente de poloneses, ainda mantinha as características do povo eslavo. Era uma senhora bonita, com pele clara e olhos azuis. Elegante e jovem para sua idade de sessenta e nove anos. Há mais de duas décadas era viúva e morava sozinha no seu apartamento no bairro de Santo Inácio em Curitiba.

Ela viveu para dar o seu amor às pessoas, aos animais e às plantas. Tinha a alma bondosa. Quando não estava conversando com o filho, o que mais amava fazer era passar horas e horas cuidando das orquídeas. Além das plantas, também adorava cuidar de seus cães, seus amigos de “quatro patas”, assim que ela os chamava. Ao longo da vida, foram vários esses amigos. O primeiro foi o Bambi, um dálmata muito lindo e carinhoso. Depois vieram o casal de fila, Rambo e Shula, e a dupla de poodle toy, Princesa, que apesar do nome teve uma vida de rainha, e Sheep, o cãozinho mais folgado do mundo. De presente do filho, ela ganhou a Lilica, a basset hound mais bonita, orelhuda e amiga que já viveu neste planeta.

Steve, o filho que havia herdado a beleza e a bondade da mãe, também adorava os animais.

Devido à crise econômica em que o Brasil mergulhou no início do segundo mandato da presidente Dilma, ele precisou, como muitos outros pilotos de helicóptero, sair do país à busca de novas oportunidades profissionais. Junto com a esposa e a filha, ele morou mais de dez anos em Luanda, onde trabalhou para uma empresa mundial do setor de apoio às plataformas de petróleo no mar.

Os acontecimentos e os fatos, desta pequena história, serão narrados na sequência que surgiram nas lembranças da mãe que, quando estava em casa conversando pela internet com o filho, viajou mentalmente ao passado à cata dos bons momentos vividos junto de Steve.

***

O estado de divagação de Aila, quando se deixou levar pela imaginação e sonhos, não durou mais do que três ou quatro minutos. Mas ignorando o ambiente que a rodeava, sozinha em seu apartamento, ela foi tomada por uma sucessão incontrolável de memórias e passou a revisitar os últimos quarenta e seis anos de sua vida, começando pelo último encontro com o filho em Luanda e depois pelos períodos da infância, da adolescência e da fase adulta de Steve...

**

Ao lado de Steve no Aeroporto Internacional “4 de Fevereiro”, em Luanda, momentos antes de embarcar de volta para o Brasil de sua última viagem à Angola, Aila comentava com Steve sobre a sua alegria de cuidar de Shenok ou Shena, como algumas pessoas da família a chamavam, a cadela bull terrier, toda branca com uma mancha preta ao redor do olho direito, brincalhona, bruta e muito levada, sua única companheira no apartamento.

— Shenok voltou a roer os pés das mesas e das poltronas. Depois de adulta retornou aos hábitos de quando era filhote. Veja as fotos, filho. — disse Aila mostrando no celular uma série de imagens da cadela brincando dentro de casa.

— Mãe, a senhora não deveria permitir essas brincadeiras da Shena. Como já conversamos algumas vezes, a senhora está tratando-a como se ela fosse uma criança.

— Em breve, lógico se a senhora concordar, gostaria que a Shena voltasse a morar comigo, pois pretendo retornar ao Brasil o mais breve possível. Já estou fechando um acordo com a minha antiga empresa para voltar a pilotar em Macaé, no Rio de Janeiro. Paula e eu sentimos saudades do modo como vivíamos no nosso país. Aqui é bem diferente, não tenho um único amigo. Mês que vem Mila completará dez anos, ela chegou aqui um bebê. Faz quase cinco anos que não vamos à Curitiba.

— Todos os dias, sonho com o regresso de vocês. — Aila, abraçada com a neta Mila e dando um beijo de despedida na sua nora Paula, respondeu.

Em seguida, abraçou e beijou o filho. E, sem olhar para trás, caminhou em direção ao portão de embarque e voltou para Curitiba...

*

Na realidade, Shena era de Steve. Ele conviveu com ela por quase três anos, desde que a pegou no canil com dois meses até quando foi morar e trabalhar na África. Nesse período, era difícil vê-los separados, eram verdadeiros amigos. Sempre que ele e a esposa viajavam nos finais de semana, a cadelinha estava incluída na programação. Ela tinha um lugar cativo no banco traseiro do carro e era tratada como integrante da família.

Um dos dias tristes na vida de Steve foi quando ele seguiu para Angola e Shena, devido às burocracias e exigências daquele país, teve que ficar no Brasil.

Daquela tarde, uma sexta-feira, no Aeroporto de Luanda, Aila ainda tinha na mente a expressão carinhosa no rosto do filho ao ouvir e falar de Shena...

**

“Era uma manhã prodigiosa de novembro, um dia como só vemos quando estamos de bem com a vida. Havia um céu tão azul e tão claro que, ao vê-lo, imaginávamos um mundo de paz e felicidades.” Assim era como a mãe se reportava à data de nascimento do filho. E sempre concluía dizendo:

— Queria Deus que todos os dias fossem iguais àquele!

Todas as mães acham que têm o bebê mais lindo e inteligente do mundo, mas Aila não achava. Ela tinha certeza.

Quando nasceu, Steve fez muito sucesso entre as enfermeiras e os médicos da maternidade. O rostinho não estava inchado, não tinha a cabeça careca. Era realmente muito bonito e, por ter nascido num lindo dia de novembro, no berçário todos o chamavam de “filho da primavera”.

Desde o seu primeiro dia de vida até os onze anos, Steve descobriu o mundo à sua volta. Aprendeu tudo que tinha que aprender para sua idade e muito mais. A cada dia ele surpreendia seus pais, avós, tios e amiguinhos com a facilidade que tinha para se comunicar e expor os seus argumentos.

Aila não se esquecia do dia em que pela primeira vez Steve disse que queria sair de casa e morar sozinho. Naquela época eles residiam numa casa com uma pequena piscina nos fundos do quintal. Faz muito tempo, mas assim aconteceu...

*

Certa tarde de verão, ainda com cinco anos, ele quis convencer a mãe de que estava muito calor para fazer a lição de casa e que a melhor opção seria irem pra piscina.

— Mamãe, podemos ir agora pra piscina? — ele perguntou enquanto abria a gaveta do armário e pegava a sunga.

— Claro que não! Está na hora de fazer “o trabalhinho de casa”. Senta aqui perto de mim. — respondeu a mãe, já arrumando o material da escola na escrivaninha.

Olhando para a tevê do seu quarto, que ainda estava ligada e transmitia o seriado “Chaves e Champolin”, Steve, caminhando para sentar no seu local de estudo, em obediência à mãe, disse:

— Ninguém gosta de mim! Eu queria não ter mãe e morar numa barrica na rua.

Aila, fingindo seriedade no modo de falar, disse:

— Mas você pode ir, já está um homenzinho. Quer que a mamãe ajude arrumar a sua bolsa?

E os dois continuaram conversando no quarto. A mãe, dando “corda” no assunto, pois queria saber como filho iria expor a sua desistência, pegou uma pequena bolsa e o ajudou a colocar algumas roupas dentro. Quando tudo estava arrumado, eles se dirigiram para o quintal e foram para o portão de saída.

— Vai dar um beijo de despedida na mamãe? — perguntou Aila entregando-lhe a bolsa.

Sem nada responder e com um semblante de quem não estava entendo aquela situação, ele deu um beijo na mãe e seguiu pelo canto da calçada, segurando a bolsa com as duas mãozinhas.

O coração da mãe tremia como o de um passarinho encurralado em uma gaiola. Mas enquanto ele se afastava lentamente, Aila, mentalmente, contava. Iria buscar o filho quando chegasse ao número trinta.

Não longe do portão, de repente, ele parou. Olhou timidamente para trás. Naquele instante, a mãe correu ao encontro do filho e abraçando-o terminou com aquela brincadeira.

— Venha no meu colo — disse ao filho. — Vamos pra casa! Eu não quero ficar sozinha. Você pode ficar morando comigo? Amanhã poderemos passar à tarde inteira na piscina. Melhor não morar na barrica, não é Steve?

— Tá bem, mamãe. Não vou morar na barrica, vou morar com você — disse à mãe com um lindo sorriso no rosto.

*

Para Steve, o episódio quase nada significou. Mas Aila, sem saber por que, jamais esqueceu aquele dia. Ela, constantemente, mesmo depois de anos, contava o ocorrido às suas amigas, citando que a expressão carinhosa do filho, com um leve sorriso no rosto, ao dizer que não iria mais morar na barrica havia ficado pra sempre nas suas imagens da vida.

Com o passar do tempo: semanas, meses, anos... Aila cada vez mais conhecia o pensamento do filho, sua forma de expressar uma decisão, o seu modo de ver a vida.

Desde muito cedo, Steve passou a tomar banho, escovar os dentes, vestir as roupas e pentear os cabelos sem ajuda da mãe. Na escola, diversas vezes Aila o ouviu dizer para os coleguinhas: “minha mãe parou de me dar banho quando fiz quatro anos”.

Steve ainda não tinha completado sete anos, quando a mãe tomou consciência de que ele realmente buscaria um modo de viver cada vez mais independente. Isso aconteceu quando os dois, mãe e filho, estavam num ônibus, que não era escolar e sim urbano de passageiros, a caminho da escola, como faziam de segunda à sexta-feira.

*

Sentado ao lado da mãe, olhando pela janela e admirando-se com a quantidade de crianças nas calçadas que sozinhas aguardavam a condução escolar, ele disse:

— Também sei ir sozinho pra escola!

Aila olhou de relance para o filho e, fingindo que não tinha ouvido, permaneceu calada e continuou lendo a sua revista sobre gastronomia.

Ele olhou para mãe por um momento e percebendo que ela continuava entretida na leitura, chamou:

— Mãe, mami? — surpreendendo-a com o volume de sua voz.

— O que houve, Steve? Ainda não está na hora de descermos do ônibus.

— Amanhã quero ir sozinho pra escola. A senhora deixa? — ele disse, olhando diretamente nos olhos da mãe.

Um leve sorriso infantil cruzou seu rosto enquanto ele repetia:

— A senhora vai deixar, não vai?

Para evitar uma discussão dentro do ônibus repleto de passageiros, Aila respondeu:

— Filho, este não é um assunto para conversamos agora. Vou pensar. Em casa responderei, está bem?

Steve nada disse. Eles seguiram em silêncio até descerem da condução na parada em frente à escola.

Ao chegar em casa após as aulas, ele não sossegou enquanto a mãe não lhe dava uma resposta. Depois de muita conversa, Aila conseguiu convencê-lo de que, para testar se realmente conhecia o caminho e o número do ônibus, os dois iriam separados, como se fossem estranhos, mas na mesma condução, durante uma semana.

— Sei ir. E vou fazer isso direitinho, Prometo — ele disse enquanto ganhava um beijo da mãe...

Dez dias depois, Steve se despedia da mãe no portão de casa e seguia para escola. E também sozinho voltava da escola para casa.

**

“A fascinação de Steve por aviões, lhe surgiu, como acontece com muitos meninos, quando ele tinha quatorze anos.” Assim, Aila começava a responder quando alguém lhe perguntava sobre a profissão do filho. E ela, dependendo do interesse do interlocutor, prolongava a conversa e muitas vezes contava a história do menino que aos dezoito anos de idade, antes de tirar a carteira de habilitação de motorista, já pilotava avião militar.

A narrativa da mãe sobre a trajetória do filho no curso de aviação sempre começava pelo dia quinze de julho de 1999 e abordava os mesmos detalhes.

Aila comentava:

As horas estavam difíceis de preencher naqueles dias frios em Curitiba, pois pela programação das aulas práticas e teóricas Steve estava liberado pelo instrutor para efetuar o seu primeiro voo sozinho na aeronave, o que eles chamavam de “voo solo”, em qualquer dia daquela semana.

Era quinze de julho, o dia não terminava. Ainda faltavam quarenta minutos para as cinco da tarde, horário que normalmente Steve ligava para casa quando terminava de voar. Aquela quinta-feira estava longa, a semana estava enorme, o mês não acabava. Nem o século terminaria ao final daquele ano de 1999. Eu estava sentada na cozinha, tomando um chá preto. As torradas que eu adorava continuavam intocáveis no prato. Devido à minha preocupação com a ausência de notícias e a impaciência com a hora que não passava, meus dedos, quase que involuntariamente, não paravam de tamborilar na lateral da mesa. Há cinco dias meu filho não fazia contato. E o nosso acordo era ele ligar, eu só telefonaria em uma situação crítica. Como nos dias anteriores, continuei ali, sentada, pensando na vida e olhando para celular. Quando estava a caminho do fogão, para preparar mais uma xícara de chá, ouvi o celular tocar. Era Steve. O coração me palpitou tão forte, que até me doeu à cabeça. As pernas tremeram. Eu iria saber o dia que ele faria o seu primeiro voo sozinho.

— Alô! Oi meu filho!

— Oi mãe!

— Tudo bem com você? Já marcaram a data do seu voo solo?

— Sim, mãe. Foi hoje. Pousei há dez minutos. Já estou usando o cachecol de piloto — ele respondeu com a voz tranquila e segura, como sempre fazia quando terminava uma prova.

— Steve, nós tínhamos combinado que você me avisaria à data do voo. Lembra?

— Sim — ele concordou e calmamente disse. — Para que a senhora não ficasse tensa com o voo, preferi não cumprir o prometido.

— Mãe, deu tudo certo. Agora sou um piloto de avião.

— Parabéns, Steve. Mais uma vitória. Sinta-se orgulhoso.

Aila concluía sua narrativa sobre a formação profissional do filho, resumindo os acontecimentos dos anos seguintes em poucas palavras:

Muitos outros voos aconteceram até dezembro de 2000, quando Steve se formou oficial aviador.

Nos anos seguintes, especializou-se na aviação de asa rotativa e fez o curso do helicóptero russo MI-35 na cidade de “Rostov do Don” ao sul de Moscou.

Depois de certo tempo, deixou a aviação militar e foi trabalhar como piloto civil no apoio às plataformas de petróleo no mar.

Quando chegava ao final do relato, Aila invariavelmente ficava por alguns minutos pensando nos dias que antecederam a ida do filho para escola militar de aviação em Barbacena, Minas Gerais, onde cursou o primeiro ano, e depois em Pirassununga no estado de São Paulo.

**

O rosto de Steve, um adolescente de quatorze anos que na época mantinha o cabelo comprido e preso por um rabo de cavalo, aparecia em sua mente...

Os dois sentados lado a lado na varanda, num final de tarde de junho, ela lendo a obra-prima do escritor russo Ivan Turguêniev, “Pais e Filhos”, sobre o jovem Kirsánov que vive com seu pai viúvo, Steve cochilando com seu skate no colo.

Em um determinado momento, Aila, colocando o livro sobre a mesinha lateral, diz:

— Steve, acorde! Está quase na hora do jantar. É a segunda vez esta semana que você fica espairecido com a trilogia do “Senhor dos Anéis” e com jogos de “RPG” até tarde da noite. Faz uma hora que estamos aqui sentados, desde que chegou da aula na Cultura Inglesa, e você só cochila. Não disse uma palavra do assunto importante que queria tanto conversar comigo. Esqueceu? Então, não é tão relevante assim.

Alguns segundos depois, com a voz baixa, quase sussurrando, ele disse:

— Ontem à tarde, quando saí da aula de inglês, um rapaz e uma moça, numa Kombi parada em frente ao curso, estavam distribuindo panfletos. Eu peguei um, mãe.

— Sim, Steve! O que tem isso de tão importante? Eles estavam anunciando milho cozido ou um novo jogo de RPG? Não são as suas compras preferidas quando sai do curso?

Ignorando a brincadeira, ele levantou e, calado, foi pegar o panfleto que havia guardado na mochila. Ao retornar do seu quarto, viu Aila em pé na sala de jantar colocando os jogos americanos na mesa.

— Eu quero ir para esta escola, mãe — ele disse em um tom sério e mostrando o anúncio, que havia recebido no dia anterior, sobre um cursinho que preparava candidatos às escolas militares.

— O que é isso, Steve? Você numa escola militar? — a mãe, perplexa com a afirmativa do filho, indagou.

— Por que não, mãe?

— Eu não disse não! Apenas estou surpresa com essa escolha. Nunca imaginei você numa carreira militar— e virando para o espelho da sala ela disse — veja a sua imagem. Só usa bermuda e camisa de surfista, não larga o skate e adora a trança no cabelo.

— Amanhã vou cortar o cabelo — afirmou Steve, cruzando os braços em postura desafiadora e vendo seu próprio reflexo no espelho.

— Ah! Depois do barbeiro podemos ir ao shopping comprar umas roupas? Podemos, mãe? — ele concluiu não mais em uma postura autoritária, mas sim num tom carinhoso de voz.

— Sim, meu filho. Não é isso que você quer? Então, podemos — e, largando os talheres e dando a volta na mesa, se aproximou de Steve e disse:

— Seja o que você quer ser, porque na vida, às vezes, só temos uma chance de fazer aquilo que queremos.

Querer ser piloto de avião na adolescência era uma escolha comum a muitos jovens naquela época. Mas que naturalmente não durava mais do que uma semana ou um mês. Porém no caso do filho, Aila sabia que ele não desistiria e tudo faria para entrar na escola de aviação.

A partir daquele dia, Steve mudou radicalmente o comportamento, o estilo de roupa e de cabelo. Deixou os livros e jogos de heróis no fundo da estante e passou a ler artigos sobre aviões.

Steve, o filho determinado, fez tudo que era preciso fazer. Estudou o que era necessário estudar. Ficou longe de casa o tempo que tinha que ficar. Venceu obstáculos e ainda jovem, com vinte anos, concluiu, dentre os primeiros colocados de sua turma, o curso de formação de oficial aviador.

**

Aila não imaginava que estava se despedindo do convívio diário ao lado do filho, quando ele saiu de casa e foi para a escola militar. Devido a vários motivos, nos primeiros anos relacionados ao regime de internato na academia e depois aos compromissos profissionais, Steve passou a viver em várias cidades do Brasil, voltando à Curitiba uma vez a cada ano em seu período de férias.

A mãe, vez por outra, comentava com uma amiga:

— Muito cedo passei a viver longe do meu filho. As nossas conversas, em sua maioria, eram e ainda são por telefone ou internet. Ele praticamente deixou de morar comigo no início da adolescência. Em breve, completará quarenta e seis anos. Há muito tempo, mais de três décadas, que só nos encontramos nas férias quando eu vou ou ele vem me visitar.

Ela não deixava de citar que mantinha o quarto, o qual o filho havia ocupado na infância e no início da adolescência, pronto para suas visitas. Apenas o mobiliário tinha sido substituído para acomodar, num primeiro momento, a esposa e depois a filha de Steve. Em suas paredes e prateleiras, ela mantinha os objetos da decoração inicial, inclusive um pequeno quadro de madeira, de autoria de um artesão de Ponta Grossa, que antes do filho nascer o pai havia colocado na parede junto ao berço, no qual se lia “Filho de Aila”.

***

Em 2026...

Depois de quase quatro minutos hipnotizada com a beleza das estrelas da noite curitibana e revendo em pensamento as imagens de momentos vividos junto ao filho, Aila despertou, pegou o celular no chão ao lado da poltrona, olhou para o “cuco”, que estava prestes a anunciar sete horas da noite, e seguiu em direção à cozinha.

Enquanto preparava uma salada e aquecia dois pedaços de peito de frango no micro-ondas, ela não parava de pensar no retorno do filho para o Brasil, depois de dez anos morando com a família em Angola. “Em breve, a casa estaria movimentada, Eliane, que ajudava nas tarefas domésticas, como de costume quando Steve estava no apartamento, mudaria a rotina de trabalho de três para cinco dias por semana. Cada refeição se tornaria num evento inesquecível. As conversas, após os jantares, se prolongariam até as vinte e duas ou vinte e três horas. E todas as noites, antes de dormir, teria a companhia do filho, deitado ao seu lado na cama, por cerca de dez minutos. Ele lhe contaria o que gostaria de fazer nos dias seguintes e no futuro. Em seguida, lhe daria um beijo de boa noite e, abraçado com o travesseiro, seguiria para seu quarto. Era assim que acontecia desde que Steve tinha três anos de idade”.

Também não saía do pensamento de Aila que, como havia acontecido dezenas de vezes ao longo dos últimos anos e continuaria acontecendo, aqueles dias maravilhosos não durariam mais do que quatro ou cinco semanas. Tempo suficiente para o filho providenciar um apartamento, direcionar a sua mudança para o novo endereço e voltar a trabalhar. Uma coisa a mãe, apesar de desejar muito, tinha quase certeza que não aconteceria, pelo menos por enquanto: Steve trabalhar e morar em Curitiba. Ela sabia que na sua cidade não havia mercado para o tipo de aviação que o filho havia se especializado. No Brasil, mesmo quando atuando na aviação militar, ele sempre morou nas regiões sudeste ou nordeste.

Os dias, que antecediam a vinda do filho para uma temporada em casa, tornavam-se longos para Aila.

Antes, ela buscava ocupar seu tempo cuidando das plantas e brincando com Shena. Mas agora só tinha as orquídeas na varanda.

Então, num certo final de tarde, sem saber por que, em vez de tomar o seu rotineiro chá preto na poltrona da sala, Aila com a xícara na mão dirigiu-se ao quarto que no passado seu esposo utilizava como um “home office”. Parou próximo da estante onde ficavam as obras de autores russos, britânicos, irlandeses e brasileiros. E, ali em pé apreciando seu chá com torradas, passou os dedos pelas lombadas de diversos livros. Além de alguns romances, sobre o relacionamento entre pais e filhos, seu tema preferido na literatura ficcionista, encontrou também, espremida no finzinho da penúltima prateleira, uma pasta com alguns contos de Gael, seu marido.

Aila tomada pela surpresa e saudosa do esposo, que ainda não tinha completado cinquenta anos, quando em menos de três meses, perdeu a disputa que estava travando com um câncer de pulmão, sentou-se na cadeira vermelha em frente à escrivaninha e iniciou a leitura das narrativas.

Na página quase em banco, que antecedia os textos, escrito como pré-título, ela leu “Antes do Fim”. Quando terminou a leitura dos contos já eram quase cinco horas da manhã. Mas antes de dormir, consultou, inicialmente, nas gavetas da escrivaninha e depois na internet o e-mail e o telefone da editora que havia publicado os livros de Gael.

No final do mês seguinte, ela recebeu na sua caixa de correspondência um exemplar do livro “Antes do Fim”, com as últimas narrativas escritas pelo marido.

A partir daquela tarde, em que havia descoberto os textos inéditos de Gael, Aila, quando não estava cuidando das orquídeas, nem conversando com o filho pela internet, era encontrada lendo ou selecionando romances no “quarto dos livros”, assim ela se referia ao cômodo então usado pelo esposo para ler e escrever.

Em cima da mesinha de vidro, no canto direito do quarto dos livros, ela colocou “O Filho Eterno”, do paranaense Cristovão Tezza; “Aonde a Gente Vai Papai?”, do escritor e comediante francês Jean Louis Fournier; e “A História do meu Filho”, da sul-africana Nadine Gordimer, Nobel de Literatura de 1991, obras literárias que havia selecionado das estantes, as quais pretendia ler durante os quase cem dias que faltavam para a chegada de Steve à Curitiba. Também colocou sob a mesinha, para uma releitura, o exemplar a ela dedicado de “Carta ao Filho”, um dos livros escritos por seu marido Gael que ela mais gostava.

Algumas semanas depois, quando o calor do verão que se aproximava começou a se instalar nas ruas e parques da cidade, Steve, a esposa e a filha chegaram à Curitiba, vindos de Luanda num voo da Royal Air Maroc.

E como nas diversas outras vezes, a família reunida viveu momentos maravilhosos. O apartamento ficou bastante movimentado. Todas as refeições eram realizadas na mesa da sala principal, raramente usada quando Aila estava só em casa, e os jantares servidos com vinho carménère chileno, o preferido de Steve.

Naqueles períodos de convivência, os dias deixavam de ser longos. Mãe e filho voltavam rapidamente aos gestos e tratamentos carinhosos que sempre existiram entre eles. Normalmente eram os últimos a irem dormir, ficavam conversando e, vez por outra, vendo fotografias antigas até tarde da noite. Adoravam ver os álbuns de fotos dos amigos de quatro patas...

As ruas e os parques de Curitiba ainda estavam sob o calor do verão, quando mais uma vez Steve partiu para o seu novo endereço no Rio de Janeiro, cidade que receberia o filho de Aila, como morador, pela segunda vez.

E os encontros de mãe e filho, às vezes em Curitiba outras no Rio, como também os contatos pela internet continuaram acontecendo ao longo do tempo. A normalidade da vida deles eram as chegadas e as partidas.

***

Em 2042...

Com o passar da vida, Aila, agora aos oitenta e cinco anos, enfrentava com mais dificuldades os longos períodos de ausência do filho. Mas continuava recusando-se a aceitar as constantes propostas de Steve que queria levá-la para morar num apartamento próximo ao dele na Urca, um dos bairros mais tranquilo do Rio de Janeiro, local que ele havia escolhido para viver com a família depois que deixou de voar e passou a dar aulas em simuladores de voo.

— Alô, mãe! Tudo bem? A senhora demorou a atender. Algum problema ou como das outras vezes não encontrou o celular?

— Oi! Meu filho. Estou bem, eu estava no quarto dos livros e acabei deixando o telefone na mesa da cozinha quando fui preparar um chá — ela respondeu com a voz calma, mas um pouco ofegante, enquanto caminhava para sentar na poltrona da sala.

— Mas o que houve, Steve? Você não costuma ligar-me neste horário. Ainda vai dar duas horas da tarde. E hoje não é o seu dia de aula?

— Sim, estou num intervalo. Olha, não poderei passar este final de semana aí com a senhora. Surgiu um compromisso na escola para sábado, depois de amanhã. Mas já troquei o voo para sexta-feira da semana que vem. A senhora poderia vir nos visitar, posso lhe pegar hoje ou amanhã à noite no aeroporto. Venha no voo que chega às dezenove e quinze no Santos Dumont. O que acha, mãe? — disse Steve num tom de voz contínuo, procurando não tornar evidente sua preocupação com debilidade física, fraqueza e abatimento que a mãe vinha demonstrando nos últimos dias.

— Acho que não, filho.

Havia mais de dez anos que Steve tentava convencer a mãe de vender o apartamento e se mudar para Rio. E ela fazia o mesmo, procurava convencer o filho a retornar de vez à Curitiba. Enquanto não se acertavam, ele passou a visitá-la duas ou três vezes a cada mês e dia sim dia não efetuava contato pela internet.

— Não! Por que não, mãe?

— Estou cansada e desanimada. Prefiro ficar em casa este final de semana e terminar o livro do Koestler, faltam poucas páginas.

— Ok, mãe. Farei contato pela internet.

No domingo, Aila não acordou no seu horário habitual. Quando se levantou e foi à varanda, o relógio na parede da sala tinha acabado de repetir “cuco-cuco” dez vezes.

Em pé junto das orquídeas, se apoiando com uma das mãos na murada, observando as árvores, a rua, o parquinho onde levava Steve na infância, ela associou aquele cenário ao da manhã prodigiosa de novembro, um dia lindo com um céu tão azul e tão claro que, ao vê-lo, imaginou um mundo de paz e felicidades.

— Queria Deus que todos os dias fossem iguais a este! — ela murmurou pra si mesmo.

Um pouco mais debilitada do que nos dias anteriores, Aila não arrumou a cama. Não cuidou das plantas. Não almoçou. Passou o domingo no quarto dos livros, lendo e tomando chá preto com torradas.

A Lua começava a brilhar, a noite estava chegando serena e não fazia calor. Era o fim da primavera, a temperatura estava agradável. Das orquídeas “dendrochillum glumaceumflores”, que ficavam no canto esquerdo da varanda, vinha uma fragrância de perfume doce.

E, como havia combinado com o filho, lá estava Aila, sentada na poltrona num canto da sala, aguardando a “videochamada” de Steve. De onde estava ela admirava, pela porta da varanda, o céu de Curitiba.

Enquanto os minutos passavam, Aila, apreciando as estrelas surgirem naquele início da noite curitibana, se deixou levar pelos pensamentos às recordações dos momentos vividos junto ao filho...

No instante seguinte, com um leve sorriso no rosto, sua cabeça pendeu suavemente para lado direito do ombro, os dedos ficaram frouxos, o celular caiu de suas mãos...

E diferente de todos os outros momentos de recordações, aquele durou pra sempre na vida de Aila...

Em cima da mesinha ao lado da poltrona, com um marcador na penúltima página, estava um clássico da literatura mundial, “Chegada e Partida”, do escritor húngaro Arthur Koestler.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 04/06/2017
Reeditado em 30/04/2018
Código do texto: T6018328
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.