Em busca do sonho
Carlos, um professor conceituado, estudioso e batalhador, depois de realizar inúmeros projetos invejáveis na universidade a qual auxiliara a erguer, tem um sonho de, após aposentar-se, dedicar-se à arte. Esse anseio há tanto tempo guardado muitas vezes mistura-se com o seu cotidiano de forma tão intensa que o deixa embaraçado.
No retorno de São Leopoldo para Porto Alegre, lá pelas 23hs, fez um retrospecto da sua vida, coisa que costumeiramente fazia diariamente na estrada. Desligou o rádio, afrouxou a gravata e, por fim, tirou o pé do acelerador. Não havia pressa para chegar em casa.
No escuro da rodovia sobressaiam-se as enormes luzes que iluminavam o caminho. Olhando-as, em êxtase, viu-se longe, muito longe dalí, numa conceituada Escola de Artes em Lisboa.
Três anos se passaram, longos anos de tantas mudanças que neles ocorreram. Perdeu um dos filhos em um acidente, divorciou-se da mulher e, numa investida além da conta, já que o seu tempo sempre fora curto, cursou escultura no Ateliê Livre da Prefeitura de Porto Alegre, sempre com foco no que sonhara. Chegou a aposentadoria e o caminho livre para fazer o que quisesse. Nada mais o trancaria, nem mesmo a ex-mulher que sempre o condenara por exercer uma função e sonhar com outra. Homem sempre forte, nesse momento viu-se frágil, incapaz de tomar a decisão de abandonar por uns meses o seu canto e buscar uma boa escola de artes no exterior. Naquele momento sentiu-se velho para iniciar nova vida dentro do seu sonho.
Desanimado, no final da tarde daquela quinta-feira em plena primavera, decidiu sair, à pé, rumo ao Supermercado, como que buscando uma luz. As frondosas árvores da sua rua o abrigaram com tanto carinho que ele sentiu-se protegido, mais forte. Ao dobrar a esquina, absorto em seus pensamentos, sem querer esbarrou em um homem alto, com barba branca e sorriso largo. Ao pedir desculpas é questionado: “você não é o Carlos?”. “Sim” respondeu ele. Na rápida troca de olhares Carlos entendeu que a luz chegara mais cedo. O homem era seu tio que há muito tempo não encontrara. Sempre fora uma pessoa estranha, centrada no seu mundo e um tanto fugidia em relação à família mas, em contrapartida, um ser humano incrível toda vez que alguém pedia socorro, ou melhor, toda vez que ele sentia que alguém estava prestes a pedir socorro, tamanha era a sua sensibilidade.
Com o encontro Carlos desistiu do Supermercado. Abraçou seu tio e o convocou a seguí-lo até seu apartamento. Lá, após terem conversado rapidamente sobre as suas ultimas andanças, Carlos fitou o tio e falou: “o nosso reencontro foi o sinal que eu precisava para tomar uma decisão muito importante, decisão essa que eu contarei com o seu apoio. No dia posterior lá estava ele em uma Agência de Viagens marcando uma passagem para Lisboa. Foi recepcionado por uma agente que, já no primeiro momento, percebeu a alegria que tomava conta dele. Questionou-o: “No que posso serví-lo senhor? Tenho a sensação de que o auxiliaremos na realização de um sonho. Estou certa? A resposta não teve palavra; e sim um largo sorriso de Carlos.
Buscando entender se a sua reserva financeira contemplaria todos os gastos que teria, fez inúmeras perguntas ao Agente, que foram prontamente respondidas. Apesar da decisão de buscar a realização de seu sonho, percebeu que Lisboa estava aquém de suas posses. Poderia buscar outros países, mas certamente não corresponderiam a sua ânsia de aprender, mesmo naquela altura da vida.
Num ímpeto ligou para o tio e, contando com a sua vasta experiência de vida, pediu um conselho em relação ao novo norte que deveria dar para sua viagem. Imediatamente ouviu: “Não mude os seus planos por qualquer quantia que eu possa ti emprestar. A esta altura da minha vida, bem sei o que significa lidar com o bem mais precioso que temos: o tempo!”.
Carlos agradeceu mas, interiormente, relutou qualquer auxílio. Nunca havia sido auxiliado por ninguém. Diga-se de passagem, sempre foi o provedor de tudo e de todos. Como mudar naquele momento, no qual o centro era somente um sonho?
Mas o sonho tornara-se possível. O tio demonstrou entender o seu tamanho e Carlos sabia que o empréstimo, se houvesse, não faria falta para ele até a devida quitação. Por outro lado, sabia que o sonho de seu filho Pedro também era ir para o exterior para aprender Inglês e exercer a sua profissão de Agente de Turismo com maior desenvoltura. Decidiu ir para o seu quarto e dormir. O dia seguinte haveria de ser “outro dia”. Sim ... e foi. No exato momento de sair da cama para uma ducha a decisão foi tomada. Carlos, que tanto lutara como provedor de família e de ninguém tinha ganho coisa alguma, estava certo de que, contrariando tudo o que fizera até então, pensaria em si e faria a viagem.
E assim aconteceu. Em um ano retornou com a bagagem coberta de cultura e ideias, algumas esculturas em pedra sabão e a certeza de que o seu primeiro abraço seria dado no seu tio. No dia posterior, chegando à sua casa, percebeu-a fechada. Abordado por uma vizinha soube que ele tivera um câncer raro e, em questão de dois meses, morrera. Os filhos haviam retirado o que havia na casa e a abandonado. O mato ultrapassando as escadas da entrada comprovavam o abandono. A quitação do empréstimo foi efetuada na mesma conta, sem que ninguém jamais o tenha interpelado para saber do que se tratava. E a escultura que havia levado de presente ao tio fora guardada com carinho em seu ateliê, montado em menos de um ano, após uma exposição muito bem aceita pelo público e pela crítica na Casa de Cultura Mario Quintana.
Maio.2017