A TEIMOSIA DO TEMPO
Na praça sob a sombra de uma antiga árvore Seu Etevaldo observa a revoada de pombos disputando as migalhas de pão próximo do banco onde estava sentado. Crianças na pracinha alegram o ambiente com suas risadas e movimentos rápidos enquanto o cheiro da carrocinha de pipoca aromatiza o ar. O colorido dos algodões doce e dos balões perpassam vagarosamente ao som de uma estridente corneta. Os jovens chegam em grupos, meninos e meninas com seus skates e bicicletas, jogando bola ou simplesmente passando com o violão embaixo do braço em busca de uma sombra para sentar em roda para conversar, tomar chimarrão ou vinho. Seu Etevaldo vive o tempo entre lapsos saborosos do passado regado a nostalgia e saudosismo da realidade mundana que se apresenta ao seu redor. Sempre senta no mesmo banco, lê o jornal, alimenta os pombos e admira o movimento da cidade. Estava sentindo um aperto no coração pelo aniversário de falecimento de sua companheira inseparável Eloy, com a qual conviveu por 53 anos e fazia 8 dolorosos anos de sua partida para o plano espiritual. Ainda sentia seu perfume de lavanda e flores, aroma que carregava desde a juventude quando a conheceu num baile comunitário. Um vazio que era preenchido quando recebia a visita dominical de seu casal de filhos e dos cinco netos, mas logo eles iam embora e Etevaldo ficava olhando pela janela enquanto pegava sua caixinha de remédios e um copo d’água. Para sua idade avançada tinha uma “saúde de ferro”, como diziam os médicos, porém de alguns anos pra cá, aumentava o número de exames e pílulas diárias que Etevaldo ingeria com certa desconfiança das prescrições dos “jalecos brancos” como afirmava categoricamente quando podia criticar seus doutores. Repetia incansavelmente: “Confio mais na minha benzedeira, nas ervas, na alimentação e num bom sono e na hora que o trem passar, embarco sem remorso porque o Patrão Velho tá me chamando!” Era um sujeito teimoso, pragmático e honesto que forjou sua vida com o ofício de conduzir as pessoas em seu táxi e também como motorista de ônibus na empresa na qual se aposentou com cerca de 40 anos de profissão. Dirigir era um prazer que executava com entusiasmo e prudência e regozijava-se quando viajava em família com seus filhos ainda pequenos. As lembranças são a teimosia do tempo, resguardam retalhos de uma vida que se foi e se abraçam ao esquecimento numa batalha atemporal. Numa passividade solitária fazia de suas tenras recordações o que tinha de essencial em seus dias na anunciação de seu octagésimo aniversário. Uma fase de contemplação onde reinam os pequenos detalhes que faziam o “admirar do mundo da infância”, as melódicas notas musicais de uma canção, o voo de um pássaro, o brilho dos raios solares ultrapassando a empoeirada vidraça de uma janela e o latido de um cão. Em tudo há motivo para a re-admiração e a contemplação do microcosmos que permeia à todos. Sem muitos dentes para sorrir, o misto de emoções é súbito; o resplendor da alegria e a turva neblina da tristeza torna-se um terreno fértil para a melancolia. Mesmo assim, o vovô Etevaldo tinha satisfação e gratidão pela aurora de mais um dia que nascia, pouca coisa o desagradava, porém não suportava ter outras pessoas dizendo o que ele tinha que fazer, comer ou de certa forma interferir na sua habitual rotina. Considerava uma invasão a sua liberdade e tinha resistência em admitir que precisava de cuidados extras, embora sempre muito responsável e consciente sabia que um mero tombo poderia ter severas consequências. Certo dia, seu primogênito Miguel advertiu seu pai que sua solidão era demasiadamente perigosa, algo poderia acontecer com ele e ninguém ficar sabendo, já que era alheio a tecnologia dos computadores e celulares. Ao pé do ouvido do senhor Etevaldo, pronuncia carinhosamente um convite: “Pai, eu me preocupo muito com o senhor e falo em nome dos meus irmãos e da família que te ama muito. O senhor não gostaria de se mudar para uma casa de repouso, um lar de vovôs e vovós?” O silêncio pairou no ar e aquele senhor de feições tranquilas e complacentes pega a sua bengala e caminha vagarosamente ao parapeito da janela onde o gato estava parado aguardando seu carinho. Olha profundamente para o semblante de seu rebento e diz: “Filho, sabes minha opinião... se queres me colocar num asilo saia desta sala agora. Até mais...” Miguel já imaginava a contrariedade do pai, mas ficou estarrecido com a reação de frieza e indiferença do pai, tentou contornar a situação porém escutou um áspero “não me desrespeite... passar bem e um abraço para as crianças...” Etevaldo mantinha o ar de serenidade após a despedida do filho que pedia a “benção” e se retirava envergonhado por ter desagradado seu amado pai. O silêncio pairava no seu pequeno apartamento durante a sopa quente da janta, escutando a crônica esportiva e as notícias no rádio. Antes de dormir fez sua oração e saudou seu santo Padroeiro São Jorge, fechou a cortina do quarto, apagou o abajur ao lado da cama e descansou um sono profundo para não mais acordar.