O número PI

Distraído, você deixa o líquido com o qual está enchendo o copo transbordar e as gostas molham o balcão. A água da piscina acaricia seus pés, o sol arranha seus ombros, o vento faz cócegas nas suas costas. Você ouve música, o balanço do ônibus te deixa enjoado como há muito não fazia. Seus familiares estão barulhando, você aumenta o volume da TV. Por opção, por falta de opção, sem perceber - só.

Eis que um braço se apoia no balcão, uma voz te pergunta se você se incomoda com a fumaça do cigarro e você responde que "Não, imagina, posso tragar também?". Um punhado de água te respinga de repente, o tirando do transe e o dono do mergulho se aproxima para se desculpar. Alguém se senta ao seu lado, afirmando que o restante do ônibus está lotado. O irmão do primo de quarto grau da sua mãe surpreendentemente gosta da mesma série que você.

Duas horas depois vocês já fumaram um maço de cigarro, discutiram faixa por faixa daquele álbum, daquela banda, que ninguém conhece mas, pasmem, vocês sim; o ar dele é tão sereno, suas mãos tão calorosos. Vinte minutos depois vocês estão comentando Almodóvar sobre toalhas quase secas ou quase molhadas, com os braços se tocando de leve e com os olhos fixos no mesmo ponto; não há falhas mais bonitas que as linhas da bochecha dele quando o riso o pega de surpresa e ele não tem tempo de formular um sorriso. Em dez minutos, "Ah! Eu amo esse livro"; e o pescoço, e os lábios, e os braços e as mãos. Em dois episódios, as tantas outras coisas mútuas são reveladas, conversam sobre cores, o planalto central e a China; e você dá voltas onde os pelos dele se enrolam, e você se hipnotiza nos olhos que hipnotizam.

Então vem a voz da sua professora na cabeça lhe dizendo que quando a divisão se torna incompatível, você acrescenta o zero, passa a vírgula e continua. Às vezes da exato, às vezes não. Ele te chama pra ir onde os amigos estão, mas você quer evitar a multidão hoje. Ele, energético como é, quer entrar na água de novo, você só quer se secar e ir embora, talvez voltar em outro final de semana. Ele quer seu telefone e você ainda tem que pegar outro ônibus para chegar no trabalho. Ele quer te tirar de casa, te levar na praia, mas ainda é sábado. E você é só você. E o futuro é infinito, e o efêmero cabe na palma da sua mão.