Amizades e política
Dois amigos se encontraram casualmente no mercado depois de 20 anos e a alegria estampada no rosto dos camaradas não podia ser escondida.
-Jorge!? – Nilson entre um sorriso preso junto com as mais diversas vontades e emoções aprisionadas num dique da razão e do senso de ridículo que estava por uma confirmação para estourar.
-Nilson!? – Jorge dá o pontapé que faltava para um abraço apertado beijo no rosto que era o limite para dois convictos héteros se confraternizarem.
-Nossa! Quanto tempo.
-É...é mesmo 18...19 anos...
-Já fazem 20, lembro porque foi no aniversário de 20 anos da Aninha...
-Aquela gostosa...
-Casei com ela – entrou avisando Nilson antes que o Jorge falasse mais alguma coisa que depois viesse a se arrepender, vocês sabem parceiros são assim: sempre preocupados com os amigos. Jorge soltou uma baita gargalhada que foi de imediato acompanhada pelo Nilson.
-Parabéns a Ana é muito bonita. Pelo menos não casou com a Jussara, que era uma chata que não largava do seu pé.
-Como assim “pelo menos”? – indagou bem sério Nilson, mas que trazia na sua entonação um humor que se mantinha intacto. Riram novamente juntos e o Jorge disse:
-Você não tem jeito mesmo, mas e aí, me conta da sua vida. Tem filhos?
-Tenho dois pirralhos, um já está cursando a facul de Administração e o outro está no cursinho, ele pretende fazer Direito...e você, me conta
-E este papo de “facul”? Que gíria é esta?
-Tô me mantendo atualizado mora?-e riram juntos do convívio das giras de gerações distintas.
-Bom eu casei e descasei e agora to namorando uma dona aí, parece legal. Do meu casamento ficou uma menina, a Carol que às vezes passa o final de semana comigo.
-E isto é bom ou mau Shen-Tau? Háháhá –Gargalhou lembrando de um texto de Millor Fernandes que eles viram no 4º ano do ensino fundamental (O destino à maneira dos coreanos)
-Você ainda lembra? Na verdade eu sei lá Shin Fon Háháhá. Confirmando que pelo menos os personagens tinham marcado a infância dos dois.
-E o futebol? Parou? Sua barriguinha está querendo responder que sim, mas que a loira do depois continua háháhá
-Você tá muito magrinho para falar. Futebol agora só para eventos beneficentes: coisa de uma vez por ano: cansados versus chochoteiros, digo casados contra solteiros. Háháhá Pensando bem acho que este foi um bom motivo para separar: nos últimos anos os casados só estavam levando couro então mudei de time háháhá. - desataram a rir juntos e pararam com o olhar de desaprovação de uma senhora que eles não conseguiram identificar se era pelos carrinhos juntos atravancando o corredor pelo conteúdo da conversa ou pelas gargalhadas altas. Com um ar solene alinharam os carrinhos um atrás do outro dando espaço no corredor para a senhora passar e ficaram sérios até o limite: parecia que o riso doentio era uma urina em uma bexiga estourando e a chegada no banheiro e abrir o zíper era aquela senhora virando o corredor. Quase não deu para segurar: Gargalharam muito e pareciam duas crianças resgatadas lá dos tempos do colégio onde eram conhecidos por diversos apelidos que atestavam sua amizade e cumplicidade: Batman e Robin, Tico é Teco, Lippy e Hardy, e quaisquer outros personagens que estivessem sempre juntos e eles não ligavam e achavam bom – além do mais você não pode falar muito da minha “barriguinha”, pois o tempo também foi cruel com sua figura. Háháhá. Pelo menos você me parece ter uma mente brilhante, principalmente quando bate a luz nessas suas entradas...
-A seu FDP! - falou rindo junto. Mas me diga o que você faz por aqui, a última notícia que eu tinha era que você estava empregado numa construtora em São Paulo?
-A empresa estava crescendo e resolveu abrir uma filial aqui, e eu me ofereci. Na verdade já estou aqui há 10 anos. Mudei há pouco tempo para este bairro que por coincidência é perto da casa onde mora minha filha Carol.
A conversa se desenrolava solta, parecia um cachorro de apartamento que tinha sido solto numa chácara cheia de galinhas, riam das lembranças de lambanças dos tempos de moleque foram meio que lembrando com certa ordem cronológica onde buscavam as memórias mais antigas quando ainda crianças e empinavam pipas até os bailes já rapazezinhos onde ficavam juntos a observar as meninas, como que caçadores (sic) que normalmente voltavam juntos para casa sem conseguir nada, o que não os desanimavam, pois no próximo baile ali estavam juntos torcendo um pelo sucesso do outro. Quando um saia com uma menina, o que era raro, tinha, quase uma obrigação, que contar os pormenores do encontro. Na verdade nem eles sabem como aquela bonita amizade pode ser deixada de lado. Está certo Jorge fez um vestibular para engenharia em outra cidade e passando foi morar relativamente longe – em torno de 400 km, mas já existia telefone, carta e e-mail. A verdade é que se nem a mãe eles quase não visitavam quem dirá um amigo que tomou outro rumo. Aquele encontro casual parece ter mostrado que assoprada a poeira do tempo aquela amizade continuava intacta, bom até que o Nilson teve a infeliz idéia de perguntar, assim, também casualmente:
-Me diga Jorge a eleição está ai: já tem seu candidato?
-Claro, vou votar naquele que vai acabar com a corrupção. Precisamos expurgar esta podridão que está aí.
-Não me diga que você acredita nisto? Você deve estar brincando – o semblante do Nilson ficou sério e não se conseguia mesmo pesquisando nas mais escondidas expressões faciais ou corporais identificar um humor escondido: ele se sentia decepcionado com a resposta do Jorge, achava que ela era como toda a resposta das pessoas que ele considerava levados pela mídia. Do outro lado a decepção estava no mesmo nível, já que Jorge considerava Nilson como um bobo que continuava acreditando em Papai Noel e no que sindicalistas lhe falavam.
-Nilson, temos que começar por algum lugar e as pessoas inteligentes já perceberam e querem mudar este país.
-Jorge, você está me chamando de burro?
-Se está servindo a carapuça?
- Sou eu que tenho a cabeça feita por uma mídia e não tenho nenhum senso de crítica?
Nesta altura da conversa, o cachorro que corria solto na chácara deve ter pegado uma galinha e levado uma varada pelo comportamento. O ar estava pesado e ato contínuo, parecia sincronizado, eles olharam o relógio e buscaram uma desculpa que os livrasse daquela situação que conseguia ser mal disfarçada:
-Nossa conversando nem vi o tempo passar, a Ana está me esperando com alguns ingredientes para o almoço...
-E eu que fiquei de pegar a Carol hoje no colégio, ela está querendo uma calça nova e eu prometi que ia levá-la no shopping.
-Bom amigo então é isto, precisamos marcar um encontro para matar as saudades dos velhos tempos – Nilson falou, meio que por obrigação, mas esqueceu de pedir o telefone do amigo.
-É mesmo – concordou Jorge esquecendo também de pedir o telefone, esticando a mão para um aperto frio que veio substituir o abraço que perdera um pouco o sentido após aquela conversa quente sobre política. A frieza foi correspondida e cada um foi para um lado. Ambos ficaram algum tempo olhando um produto para dar tempo do outro já ter ido para o caixa e então os dois se dirigiram para o caixa onde tornaram a se encontrar. Nilson olhou para o Jorge, olhou para o carrinho e disse:
-Nossa, estava esquecendo os tomates. A Ana ia me fazer voltar – disse dando meia volta e dirigindo-se para a seção de hortifrúti.
A verdade é que após aquele dia os dois evitaram aquele mercado. Assoprado o pó, aquela amizade mostrou rachaduras que apesar de descobertas recentemente se mostraram um abismo entre os dois.