Em desalinho
Sábado de manhã, começava o ritual. Ou a sessão de tortura, como Anália o chamava. Ela e a mãe, dona Antônia, iam para o alpendre dos fundos, onde já havia uma cadeira e uma mesinha com os apetrechos: o pente fino com cabo, os bobs encapados com jornal, uma caixa de grampos, touca plástica, luvas de borracha - e o pirex com henê.
Dona Antônia cobria os ombros da filha com uma toalha velha e começava a aplicar a gosma preta, mecha por mecha, esticando bem o pixaim. Doía. Incomodava. O henê escorria, a mãe limpava com uma ponta da toalha. Anália quase sempre permanecia em silêncio, fazendo eventuais caretas. Mas não hoje.
- Mãe?
- O que foi Anália?
- Tomei uma decisão na minha vida.
- Sobre o quê?
- Meu cabelo. Não quero mais usar henê.
Dona Antônia parou por um momento de esticar as mechas.
- E o que vai fazer? Pente quente?
- Não vou fazer nada, mãe. Vou deixar meu pixaim do jeito que a natureza criou.
- Mas Anália, cabelo ruim só presta alisando! Você vai ficar feia!
- Pare de dizer que meu cabelo é ruim, mãe! Estou com quinze anos, a decisão foi tomada: hoje é meu último henê!
Dona Antônia ficou quieta. Terminou de aplicar o produto, colocou a touca plástica na filha, e comentou:
- Eu ia dizer que você tem uma hora pra pensar se é isso mesmo o que quer... mas acho que não vai mudar de ideia, não é?
- Não vou não - retrucou Anália. - Meu cabelo, minhas regras!
- Essa é a minha filha - suspirou Dona Antônia, descalçando as luvas manchadas.
[02-05-2017]