SITUS OPPOSITUS

SITUS OPPOSITUS

A esperança não conta, mas é a falta de fé que nos faz cair e ela sempre soube disso. Sempre. Colocou-se a mercê do dia. Simplesmente assim. Sua vontade também sempre esteve na mesma margem da medição de seu humor. Calçou os sapatos, colou-se de pé, mirou- se no espelho e se propôs a sair. Abriu o armário e pegou seu perfume preferido, alfazema com um toque amadeirado que a fazia lembrar sua avó paterna. Borrifou o perfume no ar e lançou-se sobre a nuvem do perfume imitando as antigas divas de filmes franceses, sorriu quase irônica lembrando-se que hoje sabia que os perfumes daquela época, eram desinfetantes tão fortes que só assim poderiam ser usados. Lembrou-se vagamente de ter prometido certa vez usar uma pulseira de berloques. Vasculhou a gaveta cheia de coisas da cômoda em vão a procura da pulseia antiga sem um mínimo de paciência. Na imprecisão do tato, deparou-se com um objeto inusitado. Com certeza não queria tê-lo achado. Não mesmo. A forma redonda e solida, e o cordão de aço grosso e frio denunciava o velho relógio de bolso. Tic tac. Seu cérebro denunciou o som na mesma hora. Maldito barulhinho. Mavioso som. Seus olhos ficaram úmidos e arderam, seu nariz queimou e a vontade de chorar tomou conta de sua alma. Ergueu-se largando o objeto na gaveta sem o ver, pois assim seria menos doloroso. Olhou novamente afigura pálida no espelho a tentando reconhecer algum traço do que fora no outono passado. Fechou os olhos e tentou viajar de volta nas lembranças daqueles dias tão quentes quanto o verão. Ela não poderia explicar seu estado de coisas. Coisas. Sorriu em sua viajem caleidoscópica. Uma certa sonata passou a passear em sua memória infantil e ela quase bailou sozinha pelo quarto ao som das notas rápidas até que algo a deteve como um uma brusca lembrança. Deveria parar sonhar nem lhe era permitido. Nesse ponto, sua vida era composta de notas distintas como pétalas de uma margarida do campo desgarrada de seu buquê. Seu nariz ainda ardia de vontade de chorar e seus olhos teimavam em derramar lagrimam capciosas e sorrateiras que ela não queria verter. Talvez chorar lhe fizesse bem, uma ultima vez. Ela jamais se sentira uma heroína, nem gostaria de ser uma. Seu futuro nem sempre fora tido como trágico, mas ela sabia que nunca seria fácil. Nunca quisera chamar atenção, e sempre pensara em viver cada dia como se fora sempre o ultimo, afinal de contas, a qualquer dia, um dia a mais ou a menos, a sua condição inalterável de situs oppositus lhe conferia certa resistência a sua pessoa. Era lhe extremamente difícil concluir amores e até mesmo amizades e sua própria família não compreendia muito bem a natureza da sua peculiaridade. Ela não lhe trazia mal algum, apenas a diferença a incerteza do desconhecido ou quem sabe do inesperado. Era esperado que seu coração parasse de bater logo depois de subir uma escada, ou que seu fígado não aguentasse uma dose a mais vinho... mas ela ia vivendo assim, e por algumas vezes se esquecia e vivia comumente como todo mundo. E foi assim. Cresceu, fez toda a escola, faculdade, se formou conquistou uma formação, bens materiais entre outras conquistas, mas o oppositus sempre estaria com ela lembrando-lhe que sonhar era no máximo restrito. Era horrível que o ser humano pudesse ter uma opinião tão rasa e estreita sobre alguém. O seu verão a dois havia durado pouco, para um amor tão grande, ela não tinha mais esperanças e deveria compreender o medo da perda e a ignorância do outro sobre sua peculiaridade. “Nada a fazer. Quando não há amor”. Conformou-se. Tratou de enxugar uma última lágrima, tratou de terminar de ajeitar-se, e antes de sair, abriu a gaveta, e sem olhar a procura da pulseira de berloques. Não achou. Então, catou o relógio e sem o olhar colocou-o num saquinho de presente. O daria a alguém na rua como prova final de seu desapego. Ultima sansão a si mesma.

Martha Lisboa

02.05.2017