A Quadratura do Círculo- cap. 40
Não me conformava com a gravidez de Paloma; por que não tinha sido eu? Era tão ruim assim? Não era lindo, mas não me faltavam dotes, como um bom vocabulário e educação. O que esse brutamontes tinha demais? Era isso que a sociedade desejava: muito músculo e poucas ideias e, além de tudo, ganhar dinheiro! Rufino era meu amigo de infância; quer dizer foi meu amigo de infância, ou tentou ser; “o que damos ao amigo, um dia darei ao meu inimigo sem ficar mais pobre por isso”- Nietzsche vem me consolar.
A tradução da Odisseia tinha ficado ótima; é por coisas assim que a vida vale a pena; frases como : “Logo que a Aurora, de dedos rosa, surgiu matutina...”ou: “ A de olhos Glaucos, Palas Atena, disse-lhe então em resposta..”, isso lido em grego, no ritmo original , era estupendo. Para os que acham esse texto demasiado pessimista, penso que todas as vicissitudes da vida valem a pena por poder ouvir uma das sinfonias de Beethoven, ou todas elas; pode incluir Mozart também; meu pai tem razão quando me incentiva a apreciar essas coisas; segundo ele essas são as únicas coisas eternas que o homem criou; é verdade; acrescentaria também a maioria das músicas dos Beatles, algumas obras de Michelangelo e de Da Vinci para completar. Pouco? Sim, quando se é exigente sobra pouca coisa para apreciar; claro que também se fala bobagem de vez em quando é há música e conversa para passar o tempo; não digo que não fizesse isso também.
Estava irritado com as crianças; via uma algazarra e lembrava de Paloma; via algumas marchando para a escola e , não suportava. Rafaela me fez sair um pouco; fomos a um desses centros de compras, ao lado do qual havia um parque. Sentamos ao lado de uma fonte; estava irritadíssimo com a algazarra que faziam as crianças, junto de seus pais; havia uma série de casais novos, com seus filhos, correndo de cá para lá. De repente, uma menininha chega perto de nós; tirou sua chupetinha e lavou-a na fonte que havia ao lado. Rafaela sorriu; a menina olhou para mim; não resisti, sorri também. Pensei :” o mundo cria as piores coisas possíveis, mas também essas coisinhas”. Não quero ser piegas, mas ali o meu dia melhorou.
Por incrível que pareça, de repente, apontam na esquina Paloma e Rufino; quis me esconder, mas já me tinham visto e se dirigiam até nós. Via-se a barriga de Paloma, já pronunciada, mas ela escondia com charme e continuava bonita, mesmo grávida. Rufino estava orgulhoso, ou parecia estar.
-Olllláááá! Como estão? Era Paloma, toda sorridente, dando três beijos em Rafaela.
-E aí, cara? Rufino já vinha apertando a minha mão com força.
Subitamente, num ímpeto, ajoelhei-me diante de Paloma e, num ato irrefletido, dei-lhe um beijo suave na barriga. Ela me olhou desconcertada, depois me sorriu carinhosamente. Rufino me olhou feio; parecia que queria me trucidar. Rafaela ficou atônita; os passantes pararam para olhar; um casal virou o rosto para olhar; ficamos alguns instantes ali, parados, eu, ajoelhado, sem dizer palavra. Paloma foi a primeira a se recompor:
-Bem, temos que ir...
Foram se afastando lentamente; eu levantei devagarinho, a tempo de vê-los se afastando, lentamente, ficando cada vez menores, e menores. Olhei para Rafaela; só consegui dizer:
-Quero ser o padrinho dessa criança!
Rafaela ficou furiosa; nunca a tinha visto assim. Fomos embora.
Não fui padrinho da criança; era demais, aliás, nem me convidaram para o nascimento, batizado, aniversário. Não nos vimos mais, mas sei que estão felizes; se isso é felicidade, a felicidade é uma ilusão, mas... temos também que nos iludir.
FIM