SOBRE A FLOR SOBRE A VANITAS
Ele acordara após um leve sono e conturbado e rápido de um rapto do cansaço. Por volta de uma da manhã se deita e mergulha no sono, às três horas acorda e remexe-se involuntariamente como ovo na panela para um lado e para o outro e enfim levanta. São quase quatro. Toma do café com leite de pé e constata que a enxaqueca não passara. Toma outro e ainda outro analgésico no alento de melhora. Constata depois que nada mudou. Já caminha para as cinco em horário de verão e o sol tardaria ainda um longo tempo até surgir, mas ele já se habituara a isso de outras tantas noites imersas e tragadas à mais sublime insônia. Ele pretende colocar em prática seus projetos mas sua cabeça não permite que fique em pé mais do que dez minutos e não permite que qualquer coisa seja realizada, nem fome e nem sono e nem preguiça e nem vitalidade e nem desejo e mais nada. A dor de cabeça que o atormenta é como a ave de rapina que rapta a vitalidade como martelo imantado na mente. O mancebo quando mais jovem acreditou que esses problemas passariam conforme a idade aumentasse, logo verifica somente piora, ano após ano seu conhecimento crescera na exata proporção de sua melancolia.
O sono retorna e então o jovem se deita, mas a dor de cabeça não permite a concentração em nada por mais de dez minutos e em seguida o sono se esvai junto com a escuridão da noite. A dor de cabeça só aumenta e ele se pergunta se ao nascer alguém implantara uma faca em seu cérebro. Abre seu caderno onde desenhara na noite anterior à insônia e analisa seus desenhos quase infantis e sem nenhum sentido. Passa pelo contraste entre o preto da caneta e o vermelho de giz de cera quase sangue ou quase escarlate, daquilo, nada gosta, fecha o caderno e a concentração – ou a falta dela – mandam levantar novamente.
Ele levanta da cama e sente o cheiro da flor de primavera que colhera e roubara de um jardim, o cheiro causa náuseas que, de tão forte odor, aquilo que era lindo passa a ser perturbador, o que era maravilhoso começa a feder a podre junto com a lembrança daquele dia em que roubara tal flor. A rosa branca sobre uma Vanitas escura também começa a escurecer e murchar e imitar a Vanitas em sua putrefação para fazer o rapaz lembrar que tudo morre, tudo acaba e tudo passa e "nada há de novo debaixo do sol". O rapaz pensa já incômodo que precisa fazer alguma coisa pois seu espírito começara a jazer como a flor e como a Vanitas e como o espírito de Dorian Gray. Colhe a flor de primavera e a atira pela janela no gesto de atirar por ela sua náusea e suas lembranças que vieram junto à flor. Atirou-a pela janela para evitar que ele próprio se jogasse pela fresta do nono andar. Ledo engano, o cheiro havia tomado conta do seu quarto e dos seus dedos que puxaram delicadamente a flor idiota.
O relógio urge cinco da manhã. Ele acorda. Olha para os lados e lembra do sonho, sente a enxaqueca e o aroma da Vanitas da morte. Toma outro e ainda outro analgésico junto ao café com leite. Pensa no que poderia fazer mas em nada consegue se concentrar por mais de dez minutos, pensa sobre seu projeto mas não consegue ficar sobre os pés sem que sua cabeça doa ainda mais. Sente náuseas como se o estômago tentasse se desgrudar do corpo. Pensa sobre as lembranças que vieram junto à flor enquanto analisa o desenho infantilóide de vermelho opaco e preto-cinza. Algo deve ser feito, pensou. O cheiro da flor invade sua cabeça de forma estonteante. Ele lembra que Clarice disse que não há nenhum problema em ser ladrão de rosas. Mas ele tirou uma vida, a da rosa, agora a rosa de primavera começa a tirar a vida dele a partir de seu aroma fúnebre sobre seu estômago e sua enxaqueca. Ele apanha a flor de cima da Vanitas, coloca ela sobre sua cama. Em seguida pula da fresta do nono andar em busca de enfim, um leve sono.