A Quadratura do Círculo -cap. 36

Disse anteriormente que minhas opções de convívio se limitavam; quer dizer, havia aqueles para os quais você dava bom dia e trocava duas ou três palavras; se isso é convívio social, é muito pobre nossa cultura.

Essas coisas foram desenvolvidas, quem sabe, para manter a convivência civilizada; penso como deveria ser o encontro de dois homens-das-cavernas; um rugiria para o outro, como fazem os gatos ao defenderem seu território. Nós somos mais hipócritas e atarraxamos um sorriso no rosto, meio de má-vontade : “bom dia, tudo bem?”

Nunca vi ninguém ser sincero e dizer “dia mais ou menos”, mesmo que esteja com uma dor de barriga daquelas! Ou : “vamos levando” ou ainda: “ a coisa tá feia!”. Nós somos hipócritas , pois senão , se fôssemos francos, uma guerra fatalmente ocorreria.

Essas digressões todas fogem a meu ponto principal: na ausência de convivas, limitada ao doido do professor Avogrado, lembro de alguém que andei renegando; sim, o Severino Jirimum. Encontrei-o meio cabisbaixo e cabreiro, pois andaram implicando de novo com a horta dele.

Vou recapitular a história; a prefeitura construiu um viaduto no bairro há alguns anos e, como sempre , em obras públicas, sempre fica alguma coisa incompleta. Uma fenda, um vão entre as pilastras. Ali, naquele vão, Severino, que tinha sua barraquinha no bairro, jogou alguma terra e, por conta própria cultivou uma pequena horta, para subsistência própria, o que seria exagero, quer dizer, mais para economizar uns cobres no mercado. Além disso, plantou umas samambaias e outras plantas de jardim. O resultado, se não era primoroso, era relativamente harmonioso e, aproveitava uma área renegada, na qual não se faria nada ou se acumularia lixo.

Os moradores aprovavam o empenho do ambulante, tanto é que até compravam um machucho ou uma verdura fresquinha que plantava ali, no meio da poluição. Um dia chegou um tal de fiscal, que dizia que teria que pedir autorização tal , pagar taxa tal, que era uma área pública, etc,etc, que todos já conhecemos. Os moradores se revoltaram e, até saiu uma reportagem sobre o tal. Com isso deram um tempo, porém, jamais o esqueceriam, como esquecem na hora em que se reivindica algum direito.

O tal do fiscal voltava agora, com documento exigindo imediata retirada da horta; e mais: queria multá-lo por invadir área pública, além de exigir licença para sua barraquinha. A mim não cabe discordar dos nobres propósitos do poder público; aqui vale só uma reflexão pseudofilosófica: não somos teoricamente seres livres e dotados de razão? Todo o espaço, que não é privado, teoricamente seria público; então? Se utilizou um espaço que seria de todos para um fim útil, qual o crime desse homem? Tantos espaços livres por aí e , nem um quinhãozinho caberia a um homo sapiens, bípede implume, habitante desse planeta? Eu não entendo de Direito; talvez esteja falando besteira, mas tem uma certa coerência; não tem?

-“Seu” professor; querem passar a máquina em cima da minha horta e lascar um asfalto por cima!

-Um horror; um absurdo; isso não pode ficar assim! ( eu também comprava umas verduras dele; muito mais baratas que as do mercado!) Quem sabe consiga propriedade por usucapião?

-“Usocampeão”? É, um parente meu, lá de Nazaré das Farinhas, conseguiu isso da tia dele por “usos e frutos”; vai ver que comigo também dá!

Sabia que seria difícil, pelo tempo e pelo local em que se instalara, porém já fizera minha boa ação ao incentivar aquele pobre homem. Mas ele se animou e, ficou grato, como nunca vi; talvez por alguém que ele julgava acima de seu meio, voltar os olhos para sua situação; era para comemorar. Sempre me dava a mão e agora fazia questão que almoçasse em sua casa; dei uma desculpa, disfarcei , mas não teve jeito. Pegou aquele seu Fusca velho, em que tive que embarcar e, lá fomos chacoalhando, numa conversa sobre banalidades, lá para os rincões da cidade.

Chegamos a sua mansão ( sim, a casa de todo homem é a sua mansão!). Parece lugar-comum; vários filhos, maiores e menores; cachorros, a parede em cimento, mas a cozinha bem acabada; as panelas brilhando; os azulejos limpos. Parece que, para eles, o circundante não é ideal , mas a sua cozinha é impecável.

-A patroa preparou um frango daqueles! Só ela sabe fazer!

A mulher me cumprimentou; simpática, mas sofrida. E sentamos na mesa; havia uma travessa com um frango assado, já em pedaços. As crianças, desarrumadas, já saíram metendo a mão.

-Deixa pros convidados, Josielson; olha a educação!

-Não se incomode! Tudo bem!- sorri.

Sentamos; me apresentaram, me apresentei, etc, etc. Havia pratos, mas vi que eles pegavam o frango com as mãos e comiam, assim mesmo, lambuzando-se .

-O professor não vai comer?

Pedi um garfo e uma faca, que me cederam; meti o garfo em uma coxa, pus no prato. Cena cômica; quem já tentou comer frango com garfo e faca? Ele foi feito para se comer com as mãos mesmo; estavam certos. Você enfia a faca aqui, o frango vai pra lá; puxa pra cá, ele vai pra lá. Os dois olhavam ,acompanhando com os olhos; a luta durou uns dois minutos, até que Severino decretou:

-Com a mão, professor!

Olhei para os dois e sorri; os dois caíram na gargalhada; enfiei a mão no frango e imitei todo mundo; que legal se lambuzar com frango, como criança. Depois de uns minutos estávamos gargalhando, comendo frango com as mãos e nos sujando. Ah, e foi o melhor frango que comi na vida; que tempero! A mulher era cozinheira na casa de não sei quem e sabia das coisas.