Um Gosto de Sampa
Entrei. Foi em tempo. A porta quase se fechou sobre mim. Estação Consolação quase tranqüila às 2 da tarde. Calor de março, um forno dentro do metrô. Na pressa, esbarrei nela.
Desculpe: um sussurro. Sorrisos: vergonha. Olhares: cruzados.
E tudo danou-se.
Agora, estou no outro canto do vagão. De pé, A Idade da Razão na mão, finjo ler. Ela deve saber, pois me olha e só vez por outra se preocupa em disfarçar. Não quer mentir como eu. Algo palpita dentro de mim, relógio perdido, coração em desuso, talvez.
Está de pé também. Segura no cano. Eu, não: tenho nojo. Nojo de gente. Mas não dela. A mão pequenina e branca tira os cabelos da testa. Pretos e longos. Os meus, loiros e curtos. Sem maquiagem. Nem eu. Carrega cadernos – cursinho? Eu, livros. Sempre. Boa companhia e bom esconderijo. Mas não hoje. Pois hoje ela só faz me olhar, e não escapo. Gotículas de suor brotam sobre minha boca. Não é o calor. Ela abre um caderno, rabisca qualquer coisa numa página aleatória, passatempo.
Estudante. Será obrigação ou prazer? Imagino sem querer quais coisas habitam sua cabeça perfeita e torço para que desça na próxima estação. Mas, quando as portas se abrem e de novo se fecham sem que ela mova um músculo, o que sinto é alívio.
Por que não pára de me encarar? Os rapazes! Olhe os rapazes. Três, quatro estagiários de multinacional, terno e gravata, alinhados, bonitos como mamãe quis. Eles se infiltram na multidão, tapando os buracos entre nós. Eles me camuflam. Eu os bendigo e amaldiçôo como quem busca o desejo mas foge da culpa. Meu rosto é o de alguém que foi poupado tanto da dor como do prazer.
Mas ela, do outro lado, insiste, pede passagem, nada no oceano de corpos que suam, e quando eu me julgava livre e triste ela me surge. Anjo sem jeito. Não sorri e nada pede. Só fita e se faz fitar. Pele de leite. Olhos de oliva. Lábios de cereja. Antecipo seu sabor em minha boca, criança pobre à porta da doceria. Que gosto é esse? Diante dela meu corpo se umedece e me envergonha. Vermelho. Meu rosto está vermelho. Porque eu sei – e ela sabe – tudo o que sinto neste momento.
Brigadeiro. O metrô. Não é aqui, mas terá que ser. As portas se abrem e eu desço veloz do vagão. Desacelero. Agora, é só andar, subir as escadas.
Mas, nos degraus, quando o coração volta a bater normal mecanicamente e o livro sob o braço quase se torna interessante de novo, algo me puxa de volta. Uma mão. Dedos de leite, de criança quase-mulher, fechados intimamente sobre meu pulso. Atrevidos. Eu me volto sem surpresa. Desta vez ela sorri com dentes miúdos. Coloca um papel na minha mão.
– Se quiser – diz, apenas. E volta por onde veio, apressada como eu, como todos.
Olho para o seu bilhete. É um pedaço de folha de caderno. Nome e telefone. Laís. A palavra melada adoça minha língua. Amarga no fim.
Ganho a rua. Desci cedo demais, ainda devo vencer algumas quadras para chegar em casa. Mas tenho pressa sempre e espero nunca. O celular está no bolso. É só ligar. Deixar mensagem. Meu nome. Meu desejo. Minha liberdade, como Sartre quis.
E então reconheço aquele gosto. O gosto que ela deixou na minha boca ainda por beijar. Gosto de dúvida e urgência, de hesitação. De ditos e calados. De expectativas frustradas. Das coisas que eu sonhei no interior e não realizei na cidade. Do sossego que troquei alegremente pelo delírio eufórico deste lugar, sem paz nem trégua. Um gosto de Sampa.
Devo?
Decido.
Teclo os números.
– Alô? Serginho? Sou eu, amor. Só liguei pra dizer que estou com saudade.
Sigo meu caminho confortável, sem dilemas, apertando em meu punho, junto ao peito, o fragmento de um talvez.