Desilusão
Não sei como ou quando aconteceu e de qualquer jeito creio ter pouca importância nisso, já que os resultados dos acontecimentos é que se mostram determinantes para o relato, quase um desabafo.
Tomei consciência da inevitabilidade da vida ao entrar no velho e nostálgico Cinema Icaraí com suas poltronas vermelhas desbotadas, o vazio. No meio de todo aquele espaço, sendo um dos quatro únicos expectadores da sessão, me senti assistindo a queda de um grande animal que é vencido pelo tempo, o maior caçador de todos.
Estava desolado com a vida, e como faço frequentemente, me empoleirei na minha poltrona favorita, da coluna da direita em frente a terceira caixa de som. Cheguei mais cedo e ainda tinha duas dezenas de preciosos minutos para apreciar a solidão.
Mesmo sozinho não conseguia parar de pensar na minha estupidez. Na incrível capacidade de ser idiota comigo mesmo. Não chegou-me rolar nenhuma lágrima, mas o peito pesava e era difícil viver aqueles momentos com total lucidez de que tinha procurado minha própria derrocada.
Entraram duas pessoas falando algo e rindo, costume prazerosamente descompromissado da adolescência, época em que podemos não ligar por sermos bobos e inconseqüentes. Agora saía dessa fase e sentia algum peso da vida.
Tenho a tendência de viver com algumas esperanças, essas facilmente desesperançáveis e cuja a praticidade beira o impossível. Mesmo atacando-as ferrenhamente como forma estúpida de viver não há como dissociá-las da existência. Agora sentado e olhando aquela tela branca circundada de cortinas velhas esquecia da lógica e deixava toda a potência da desilusão tomar conta.
Não tenho porque relatar todo o ocorrido, até porque ele só vai dar um rosto específico a uma dor que é geral e não vejo graça em apimentar de detalhes o sofrimento, ele é puro.
Todos conhecemos tal efeito devastador e sublime que ela tem sobre nossos corpos. Ficamos inertes à vida e o único consolo que se tem é saber que o tempo vai fazer a parte dele. Fazendo-nos aos poucos esquecer a cicatriz, que nunca ficará totalmente curada fazendo parte indissociável da constituição de nosso ser.
Quando o filme acabou estava terrivelmente entristecido por ter que voltar ao mundo lá fora. Foi com bastante relutância e displicência que caminhava, dando cada passo em direção à luz ao fim do corredor. Pus meus óculos escuros, suspirei naturalmente e entrei na luz.
Caminhando de volta para casa passei pela livraria de minha preferência e não resisti em me enfurnar no meio daqueles papéis amontoados formando um castelo que me protegeria mais uma vez e fiz uma breve parada.
Examinando ótimos futuros exemplares a serem comprados me lembrei de todos os livros que tinha lido no ultimo ano e vi o quão presentes eles estão em minha vida. Cada qual com sua parcela no muro que construo. Cada pensamento fazendo e sendo feito pelo que já li nesses últimos anos.
Em minha doce ilusão auto induzida, para deixa claro ao leitor o quão paquiderme pode ser um ser (perdão pela repetição), comprei um volume a presenteá-la quando nos encontrássemos e pus nele certa quantidade de carinho afetuoso qual tão sincero acreditava ter suscitado admiração por sua parte.
Escrevendo e elaborando uma dedicatória exclusiva em que parte de minha essência se via confundida com palavras e a pagina amarelada daquele livro, a entregava com força e devoção a uma possibilidade que poderia se realizar, estando eu agora ciente da total improbabilidade dessa.
Infelizmente a vida não começa do ponto em que você, ou qualquer outra pessoa, quer e mesmo ao acaso cruzando seu caminho em tempos difíceis não se pode lutar contra o trajeto de outra existência. Mesmo fazendo do impossível para alterar, por mínimo que seja, o caminho natural da outra vida ela age como um rio, do tipo Amazonas que com seus vários quilômetros de largura com seu leito caudaloso ri de sua tentativa heróica e fadada ao fracasso de ferir-lhe com uma simples pá, essa pá que chamo agora de esperança.
Entristeci-me da lembrança que me assaltou assim que olhei aquele livro, bem exposto na prateleira. Tinha o comprado, como já disse, para presentear a ela e no momento da desilusão toquei fogo.
Dava-me uma débil alegria ver o fogo mutante que ia do amarelo ao vermelho corroer cada página quais nada podiam fazer contra a inevitabilidade do fato, queimou-se tudo até deixar a negra lembrança, já sem utilidade, da inutilidade do ato. Caindo novamente na idéia da possibilidade, em meus pensamentos linda e prazerosa, ficando cabisbaixo e soturno.
As duas primeiras noites são as piores, já que nada mais consegue fazer na hora escura e recolhida na sua cama que pensar em todos e qualquer detalhes antes idealizados agora capazes de apunhalar o estomago e cada vez que se sente infantil e ridículo ao deixar suas emoções tomarem conta da, sempre certa, razão.
Mas vejo nisso a graça do sofrimento, não temos consciência dele até que estejamos bons, sabemos que estamos sofrendo, mas não sabemos como ele age e opera em nós. Até que aquele dia fatídico chega e você se vê livre do peso e fica triste por ter superado. Aquilo que você não queria superar, aquilo que você queria dominar e deixar do seu lado como parte de você. Então coloca-se para dentro e abstraí-se. A dor já colocou mais um tijolinho no muro que o ergue.
Escondia-me nos livros e nos filmes os quais acolhem qualquer incauto que se predispõe a ser dragado pela fruição do inexistente. Pelo menos sabe-se que eles são podem te frustrar, a não ser que se espere algo deles. No meu caso alto totalmente improvável mergulhando em qualquer bolo de palavras cercados por duas capas e levando-me por praticamente todos os exemplares da sétima arte. A vida torna-se um mero pretexto para sofrer solitariamente em cada cena vista e em cada som escutado, o que me trouxe até a caneta e o papel.
O mais engraçado de minha patética tragédia é que me deixei dominar por ela. De fato acho que qualquer tragédia só nos pega no fundo se deixarmos. Nessa eu mergulhei de cabeça.
O pior é ter a idéia clara e limpa de que o erro só e completamente é meu. Como culpar outra pessoa por viver sua própria vida? E como achar que pode-se mudar outra cabeça só com sua naturalidade e força de vontade, esquecendo-se um único detalhe, só se muda se quiser. Mas daí vem o jogo de sedução, o qual sou totalmente indiferente achando que se a pessoa não o muda naturalmente não sou eu quem vai obrigar-lhe a mudar devido a esforços de minha parte.
Cercado de mediocridade por todos os lados acreditava que sendo como sou sobressair-me-ia entre a torpe massa de “mais uns”. E não acredite que isso é um mero ataque ou raivinha devido ao sentimento partido. Olho para qualquer lado e vejo esses montes de zumbis modernosos fingindo que vivem, em seus sonhos e inseguranças.
Desnudei minha alma com detalhes importantes na mera expectativa de abrir uma nova concepção de conhecimento humano nela, mas agora ao me ver sentado em um ônibus encarando uma hora e meia para alcançar meu objetivo diário só faço pensar inevitavelmente em meu fracasso. Chego a pensar que de fato viver o real é estar sozinho em um mundo onde só se vê espectros achando que vivem o material. Vemos sombras das vidas que poderiam ser e isso me entristece mais ainda.
Aos normais deve doer o fato de ter sido rejeitado, afastado e aquele sentimento de derrota sobressaindo aos demais passa a corroer a alma. A mim pesa saber que uma grande possibilidade foi podada, como se um grande músico promissor morresse prematuramente. Aquela possibilidade linda e cheia de encantos se esvaí de uma hora para outra, ficando apenas o lapso de sua possível existência.
Deixando a sensibilidade aumentada qualquer baladinha pop é capaz de paralizar-me emocionado com todas suas frases obvias e merreca, a fragilidade humana ressaltada pela decepção da possibilidade.
Além do desabafo creio que não poderia deixar de ressaltar a grande importância que a desilusão tem sobre o ser em sua criatividade, tendo comentado com ela da quantidade de composições e escritos que se tem sobre as desilusões. Lugares comuns de sete em cada dez obras artísticas contemporâneas, parecia prever a inevitável conseqüência de um escritor desiludido, escrever sobre a desilusão.
Creio que os motivos ainda são inúteis para o que me propus a escrever e acho que o leitor já se divertiu demais com a humilhação alheia deixando desde já meus sinceros pesares a todos aqueles que ainda vão sentir esse sentimento tão comum que chega a ser repulsivo se não fosse o final indissociável de um tempo gasto dedicado ao cultivo de uma planta podada antes mesmo de nascer e quando estiver sozinho com suas lagrimas no escuro recomendo ao leitor se lembrar que só o tempo vai curar esse pesar. Até lá continue queimando o que for preciso para, pelo menos, se divertir com a dor.