Enxugue as lágrimas
 
     Uns olham vitrines, outros passeiam pelos corredores. Os mais próximos levantam os olhos sobre eles. Estão em uma das praças de alimentação do centro de compras. Concluíram o ensino médio na mesma turma e na primeira encruzilhada da vida foram separados pelas escolhas. É tarde de terça-feira. Por quase uma década, um, não tem notícia do outro. O encontro reabre o círculo da amizade.
     – Silveira?
     – Sim, Faustino! Até as pedras se encontram, quanto mais as criaturas. Salve!
     – Como é que vai? Amigo, há quanto tempo!
     A efusão do reencontro atrai para si os olhos da vizinhança que a partir de então, ingere os alimentos, apenas, com o cuidado de mãos e boca.
     – Nem lembro mais. Quando a cabeça não tem juízo, o corpo padece. Posso sentar um pouco?
     – Faça o favor. Toma um chope?
     – A vida é um dilema. Mas, Deus querendo, água fria é remédio.
     – Bom, ainda brinca com os adágios. Você era o artista da classe.
     – Nem sempre vale a pena. Mas, a sabedoria popular diz, a esperança é a última que morre.
     – Pô... O que é que há?
     – Rosa acabou comigo. A escola do mundo é dura.
     – Meu Deus, por quê?
     – Nem Deus sabe o motivo. Mas, a colher sabe a quentura da panela.
     Rosa queria casar e ter filhos. Ele trabalhar e estudar. O casamento arremessou a vida do casal às alturas e após a queda, as sobras. A formosura da moça, antes objeto de desejo, definhou. A sensualização adormeceu na maternidade, mas como ele diz, dente morde a língua e, mesmo assim, vivem juntos. Suportaram por um tempo. As famílias ajudaram, mas sem recursos, os extintores se esvaziaram nas primeiras tentativas. A falta de profissão e trabalho colocou oxigênio no incêndio dos vícios. Passou a fumar, beber e sair com outras mulheres. Ela e o filho foram morar com a mãe. O pai faleceu.  Nada como um dia após o outro, ele assegura.
     – Deus é bom.
     – Mas não foi bom pra mim. De Deus vem o bem, das abelhas o mel, mas não precisava o amargo.
     – Todo amor um dia chega ao fim.
     – Triste, é sempre assim. De casa de gato não sai rato farto. Eu desejava um trago.
     – Garçom, mais dois.
     – Quando a miséria entra pela porta, a virtude sai pela janela. Não sei quando lhe pago.
     – Se vê depois.
     – Quando a desgraça vem, não olha a quem.  Estou desempregado.
     – Você está mais velho.
     – É, vida ruim. Deus dá a farinha e o diabo fura o saco. Você está bem disposto.
     – Também sofri.
     – Cada um a seu modo. Mas, não se vê no rosto.
     – Pode ser.
     – Você foi mais feliz. O poder mostra o que o homem é.
     – Dei mais sorte com a Beatriz.
     – A água corre para o mar. Pra frente é que se anda.
     – Você se lembra dela?
     –Bem ama quem nunca se esquece. Não.
     – Lhe Apresentei.
     – Da própria pele não há quem fuja. Minha memória é fogo.
     – E o l’argent?
     – Dou murro em ponta de faca. Defendo algum no jogo.
     – E amanhã?
     – Das telhas prá cima, só Deus e os gatos. Que bom se eu morresse.
     – Prá quê, rapaz?
     – Do perdido perca-se o sentido. Talvez, Rosa sofresse.
     – Vá atrás.
     – É mais fácil rasgar que costurar. Na morte a gente esquece.
     – Mas no amor a gente fica em paz.
     – É melhor uma boa morte do que a má sorte, mas erva ruim, geada não mata. Adeus.
     – Tome mais um.
     –Enchida a pança, vamos à dança. Já amolei bastante.
     – De jeito algum.
     – Muito obrigado, amigo. Lágrimas com pão, passageiras são.
     – Não tem de quê.
     – Por você ter me ouvido. Só dá quem tem e quem quer bem.
     – Amigo é prá essas coisas.
     – Tá... A boca fala do que está cheio, o coração.
     – Tome um Cabral.
     – Sua amizade basta. A consciência é a melhor conselheira.
     – Pode faltar.
     – O apreço não tem preço, eu vivo ao Deus dará.
     O aperto de mãos, seguido de abraço comove quem está próximo. As lágrimas, nas faces de ambos, competem em corrida até se lançarem em queda livre. Ele caminha para a saída, enquanto é observado pelo amigo que volta a sentar-se e pede uma bebida mais forte para diluir a angústia. Meia hora após, paga a despesa e segue para o estacionamento. Ao volante, lembra que não deveria ter bebido, fecha o veículo e apanha um taxi.
     A escuridão inicia o domínio sobre a claridade. O sol foge à procura de abrigo na linha do horizonte e em retirada, faz do céu uma infinita aquarela de cores dopadas de sono. Do alto, a lua paciente espera que ele adormeça.
     Os pedestres se abrigam em pontos de ônibus na esperança de brevidade do transporte de volta para casa. Buzinas denunciam a impaciência dos motoristas e, a retenção de nossa saída nos defronta com o engarrafamento. Há luzes de ambulância, carros de polícia e aglomeração na avenida defronte a entrada principal.
     – O que houve?
     – Um atropelamento, recolhem o corpo e logo vai desafogar.
     – Sabe quem foi?
     – Não, quando vi estava coberto. Comentam sobre um homem que partiu em disparada da calçada aqui em frente, atravessou o canteiro central e foi apanhado por um carro no sentido contrário na outra pista. É; morreu na contramão, atrapalhando o trânsito.
     Abaixa a cabeça, fecha os olhos, enche os pulmões e solta de uma vez.
Uns choram, outros vendem lenços.
 
Intertextualidade.
Amigo é pra essas coisas - Aldir Blanc e Silvio Silva Júnior.

Construção - Chico Buarque.