Por detrás da porta
A primeira vez..., ela não saberia dizer. __“Só sei que todas às vezes que o meu olho cruza com o dele, sinto febre.” __ Confessava para as amigas, escrevia nas capas dos cadernos, rabiscava nos muros, registrava no diário. Estando em casa, passava um tempo grande diante do espelho, pintava os olhos, penteava os cabelos, mas gostava mesmo era da boca, essa era desenhada, pintada, esculpida com batom. Depois deixava, no vidro, dezenas de beijos coloridos, todos dedicados a Ele.
Os olhos vítreos plantados, a cada dia, na cara de uma estranha, apontavam-lhe o dedo. Registrou, na página vinte oito, uma autopunição, sentia-se erguida pelas orelhas e jogada em cima da cama, ali, ficava horas a se penitenciar pelo crime; no final da página, foi ousada: __Estou batendo na porta do mundo, mas para entrar, só arrombando.
Ultimamente, procurava respostas para suas dúvidas, nas leituras indicadas por uma amiga, até encontrou algumas. Leu numa revista que os “treze anos” é a idade dos conflitos. Leu também uma porção de conselhos para se conviver bem com eles, mas não conseguiu encontrar, um que lhe dissesse o que fazer quando se ama e odeia a própria mãe e o marido dela.
Ao confidente diário contou: __ Sei que não lhe sou indiferente, mas às vezes, penso que o único sentimento que lhe desperto é aversão. __Hoje, ao amigo objeto, despejou um lamento: __Éramos únicas até ele entrar em cena.
Sentia por ele um ódio tão grande que nos seus sonhos ela o trucidava, incinerava e espalhava as cinzas pela pracinha, onde eles, de mãos dadas faziam caminhadas. Acordada, pensava espalhar pelo seu quarto as cinzas dele, e escreveu com uma letra bem delicada: à praça, eu reservo, às de minha mãe.
Vivemos sob tensão aqui em casa, e já não há com quem falar sobre o que acontece, a não ser com você, meu diário, mesmo porque, não acontece nada além de um bom dia seco e uma boa noite embriagada, equilibrando-se nos limites dos meus passeios noturnos pela casa, imaginando o que acontece por detrás da porta, santuário proibido para mim. Proibido por mim mesma. Ela é, ao mesmo tempo, um marco que me repele e um imã a me manter nos arredores. Um tormento que ilustra minhas insônias. Querido diário, confira os horários.
00:02 h, já é meu aniversário, será que alguém se lembrará? Suas risadas, seus sussurros, seus movimentos fazem ecos nas noites que passo em claro, e nos dias que se arrastam eu conto pra você, meu diário, meu confidente; uma maneira que encontrei de me sentir mais leve. __ Ela ia registrando tudo, os silêncios se desmanchando em palavras que rabiscavam a verdade dela: __Eu o amo. Sinto ciúme. É pecado, eu sei. É um inferno. __ tudo elencado e se misturando numa linguagem adolescente.
Uma confissão quase erótica e meio poética deixou uma amiga preocupada: __ Ontem, tive vontade de deixar o papel e correr para ele, ser por um minuto o alvo da sua atenção e explorar o fundo dos seus olhos, atravessar suas lentes. Ser o motivo do seu riso e me desprender das minhas culpas, das minhas vestes. Ver o mundo reduzido ao seu cheiro e à sua energia nua. __Calou-se ao perceber que deixou a amiga chocada. __ Você está doente.
O resto foi contado ao velho e bom amigo diário: __O desejo de ser tragada e carregada para o que tem por detrás daquela porta, comporta tudo o que desarranja no meu universo. __Com a caneta entre os lábios, não ousou registrar, mas repetiu em pensamento os versos lidos incerta tarde: __ Os corpos e seus vórtices que se encaixam sonoros, melódicos, animados, capazes de me arrastarem para esse torvelinho que condena a serpente ao estigma do pecado. __Sentiu que foi além e procurou se redimir num parágrafo: A olho nu, nada existe de anormal. Somos somente duas pessoas que convivem na mesma casa e amamos uma pessoa em comum.
Manhã de sol, mal se levanta e já está cansada. Passou a noite em claro confeccionando o retrato dele, tamanho 20X30 que consegue deixá-lo embaixo do pires, camuflado ao guardanapo. No verso uma mensagem: por detrás da porta. Ela agora irradia para os seus olhos, que hoje, ainda bem cedo, o acariciou no espelho do banheiro enquanto ele se barbeava. As costas era uma montanha, um convite a escalada. A toalha, uma advertência, mais uma na lista dos seus ódios.
E agora, fitando-o através da névoa do leite quente, vislumbra um brilho de censura, enquanto empurra o retrato para o bolso. __Tome seu leite, se não esfria.
Ouviu os passos se afastando, a porta batendo, o motor do carro se misturando a outros. Saiu da mesa e literalmente se esparramou no chão. Com a fronte apoiada nos braços viu as lágrimas formarem, no ladrilho, um desenho colorido como se estivesse longe dali, ora um anjo fugindo, ora um réptil se esticando, escorrido. Eles se movimentavam num ensaio nada engraçado cada vez que piscava os olhos alternadamente, como se a qualquer momento, ela fosse ouvi-los, mas acabou mesmo ouvindo só os soluços que foram se espaçando até se reduzirem a uns poucos pares valsando no ar saturado de loção pós-barba.
__ Querido diário, ele deixou a sala como um ator deixa a cena...