1001-UM BAU DE RECORDAÇÕES -

UM BAÚ DE RECORDAÇÕES

Elegante, sempre impecavelmente vestido, mesmo no trabalho, Tio Armando era um dos melhores, senão o melhor alfaiate da Alfaiataria Chico Denúbila. Alto, loiro, olhos claros, foi muitas vezes, quando residia no Rio de Janeiro, confundido com estrangeiro — americano, inglês e até mesmo alemão.

Tinha bom gosto, gostava de cinema, teatro, leituras e de dançar. Cuidadoso, colecionava os primeiros exemplares da revista Seleções do Reader’s Digest, lançada no Brasil em 1941. Lia Schopenhauer, Will Durant e tinha um volume com as principais peças de Shakespeare.

Guardava seus livros num baú de madeira, onde mantinha também, numa caixa de papelão, recortes de revistas e jornais com o que mais lhe interessasse: notícias e fotos sobre artistas de cinema, artigos, crônicas e poesias publicadas nos dois semanários da cidade, cartões de Natal e de aniversário que recebia, cartões postais dos locais por onde viajara, envelopes com alguns selos raros — essas coisas que, escrevendo agora, pode parecer ridículo guardar.

Uma ocasião me mostrou um envelope com uma carta, destinada ao seu colega de trabalho, Manoel Gomes de Alcântara, português de Lisboa, que deixara o rincão natal e “viera dar com os costados nesta maravilhosa terra”, como ele mesmo dizia.

Não sei se tio Armando guardava o envelope e a carta pelos selos da parte externa, ou pelo conteúdo, uma carta que talvez Manoel se esquecera de tirá-la do envelope, quando o deu ao tio Armando.

A carta fora escrita por sua mãe e era uma preciosidade, na sua simplicidade. Quando me permitiu a sua leitura (eu já estava no ginásio, tinha então treze anos), me fez prometer:

— Jamais comente com ninguém o que você vai ler nesta carta. Promete?

— Sim, tio, prometo. — Respondi, pensando em um terrível segredo, um mistério, coisas assim.

Então, li. A carta dizia:

“ Meu querido filho Manuel:

Escrevo estas poucas linhas para saberes que estou viva. Escrevo devagar porque sei que não gostas de ler depressa.

Se receberes esta carta é porque chegou. Mas se não chegar, peço que me avises, que te envio outra.

Teu pai leu nos jornais que a maioria dos acidentes ocorre a um quilômetro de casa. Por isso, decidimos nos mudar para mais longe.

Sobre o casaco que tu querias, teu tio disse que seria muito caro enviar pelo correio por causa dos botões de metal que pesam muito. Por isso arranquei-os todos e coloquei em um dos bolsos. Assim, quando o casaco chegar aí, basta que tu pregues os botões novamente.

Sobre nosso cãozinho, o Rexino, ele foi atropelado e o veterinário teve que cortar-lhe um pedaço do rabo. Por isso, meu filho, preste tu também muita atenção sempre que fores atravessar a rua.

Tua irmã Maria vai ser mãe. Mas como ainda não sabemos se será menino ou menina, não sei se tu serás tio ou tia.

Se encontrares a dona Rosinha, diga-lhe que mando lembranças. Mas se não a encontrares, não precisa dizer nada.

Um beijo da tua mãe.

PS – eu ia enviar os 300 euros que me pediste, mas quando me lembrei, já havia fechado o envelope. “

****

Sim, guardei o segredo até hoje. Mas passados tantos anos, não resisto em compartilhar com meus amigos, ainda que no formato de conto, essa preciosidade literária.

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 7 de fevereiro de 2.017

Conto # 1001 da Serie MAIS 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/03/2017
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