Afortunados

Afortunados

Por causa da proximidade o sítio tornou-se uma espécie de extensão da pequena propriedade de meu avô materno. Pertencia a uma família pobre cujo patriarca já falecido era compadre do meu velho em quem os cinco filhos, todos solteirões, três com sérias limitações mentais, se apoiavam, sendo ele padrinho de um deles todos o respeitavam como tal. A propriedade pertencera a muitas gerações daquela família, por isso a casa muito velha de pau a pique se sustentava precariamente nos grossos frontões de aroeira, o espigão, de telhas curvas ainda acenava ao longe como um raro livro de história que o mofo e as traças acabariam por dar fim. Os enormes quintais eram repletos de árvores frutíferas de proporções descomunais, ao fundo passava um córrego de pequeno volume, mas de água muito pura, por isso de grande valia para os moradores. Esse fio d’água enfiava-se por dentro dos densos bambuais sob os quais, formavam-se agradáveis galerias sombreadas onde brincávamos meus primos e eu, nos melhores anos de nossa infância.

Passaram numa velocidade vertiginosa os anos coloridos da minha meninice. Pessoas e coisas de minha mais profunda estima hoje não passam de quadros desgastados na parede da lembrança. Meu velho avô não podendo mais com o trabalho no campo vendeu o seu sitio com todas as suas criações, com todas as suas plantas cultivadas, com todos os seus sonhos plantados e veio se confinar numa casinha, no meio da balburdia da cidade à qual nunca se adaptou. A tristeza instalou-se nos seus olhos azuis e arrastou o seu resto de vida para o declínio definitivo.

Muitos anos mais tarde, deveres do meu trabalho levou-me ao sítio daquela família pobre que ainda tem a posse daquele raro reduto de tranquilidade. Por aquele tempo um dos irmãos especiais já havia morrido e os dois outros estavam internados numa instituição de caridade. A casa velha era um monte de escombros coberto de eras. Os irmãos que ali permaneciam, um homem e uma mulher já idosos, moravam então numa casinha de alvenaria sem acabamento possivelmente erguida pela generosidade de parentes distantes e dos vizinhos. Ficaram tão admirados quando me apresentei! A mulher derramou algumas lágrimas: “você lembra muito o Padrim João”. Sei que ela estava só tentando me agradar, mas seu comentário ingênuo me deixou honrado. Ordenou ao irmão (ela era mais velha) que fosse pegar um frango no quintal e colher alguns quiabos na horta. Lamentei sinceramente não poder ficar para o almoço, mesmo assim pude ver, dali a pouco, o homem tombando capim enquanto, com os braços abertos para cima, brandia o chapéu de palha no afã e encantoar o galináceo, um índio esguio já quase galo.

Observei a pequena roça de milho acenando os primeiros pendões, um retalho de mandiocal um pouco mais além, o velho pomar desordenado e de feitio aborígene, com novas mudas crescendo vigorosas, bananeiras altivas na beira do córrego, abelhas arapuás atacando as flores das laranjeiras, um cão vira-lata se coçando ao sol da manhã, um joão-de-barro pousado no galho do abacateiro insistindo no seu canto estalado, decerto projetando a obra a iniciar, um cercado de taquaras com uma galinha de pintos, providência contra o ataque dos gaviões, uma vaca mugindo distante, uma revoada de periquitos, mulatas-da-sala ao rés do chão, um pé de manacás.

Carlinhos Colé
Enviado por Carlinhos Colé em 15/03/2017
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