Teatro da Vida

Outro dia me peguei conversando com uma amiga, que me dizia há muito tempo ser tímida, mas que agora, depois de alguns anos tentando sair desse chamado ciclo do solidão, como ela mesma o chamou, havia finalmente encontrado o que parecia ser a verdadeira porta para deixar de ser tão sozinha nesse mundo de meu Deus. Nós sempre nos encontramos aqui, enquanto esperamos passar o ônibus, então pode-se dizer que eu acompanhei um pouco de longe e ao mesmo um pouco de perto, toda a sua peripécia enquanto atriz. Sim eu sei que você pode se perguntar, mas por que não conversamos via celular ou computador, naqueles mensageiros instantâneos simples, que todos nós já nos habituamos a utilizar no dia-a-dia. O motivo é muito simples: não quero um afeto muito grande nessa minha amizade com ela. Eu sei, isto é uma coisa estranha a se dizer, mas de vez em quando se prefere ter alguns amigos em seus lugares, enquanto outros, que fiquem em outros. Talvez para não gerar algum tipo de ciúme ou incômodo, de certo apenas, que ela era minha amiga do ponto de ônibus. E já que você está querendo saber um pouco mais, meu amigo de letras, não custa continuar a contar.

Ela me revelou como foram os primeiros dias do curso. Eu confesso que não entendi tão bem quanto queria -- dado não pela pressa de pegar minha condução, mas porque simplesmente eu não compreendia o tamanho da alegria dela de estar frequentando aquelas aulas. Ela disse que na primeira aula, tudo era muito novo e confuso (para mim ainda o é), mas com o passar dos exercícios que a professora passava e com as conversas com os amigos da peça -- não lembro quais -- ela foi "pegando o jeito". Era como se de repente, contracenar sempre estivesse no sangue dela e tudo o que realmente precisava, era de tomar coragem para pegar aquelas aulas tão boas. Foram assim passando mais e mais semanas, e sempre quando nos víamos, ela me contava algo novo. Confesso que fiquei surpreso quando de repente, já era nada mais, nada menos, a quarta peça que ela apresentava, Por que você não vai nos ver, ela me perguntou. Eu fiz uma cara... um sorriso constrangido, afinal, ela era apenas a minha amiga do ponto de ônibus. E agora? Como dizer a ela um "não", sem magoá-la? De repente, sem eu esperar ou sem eu poder dizer alguma coisa, ela mesma de forma aliviada respondeu que, Não precisa ir se não quiser... Mas olha é uma comédia sobre... Foi estranho. Como se ela adivinhasse apenas com minha coçada de cabeça nos cabelos, que eu realmente não queria ir. Há apenas... eu perdi as contas, 4 peças passadas? Há apenas quatro peças antes dela entrar no teatro, de fato, ela não ia conseguir adivinhar o que eu pensava, ou simplesmente, não se entristeceria ou não ia conseguir demonstrar que não estava triste mudando de assunto rapidamente. Por que ela mudou de assunto tão rápido? Bom o papo ainda estava em, Sou eu quem faço o papel de..., o que queria dizer que apesar dela ter superado, ou fingido superar a minha negativa sem jeito, ela agora conseguia contornar tudo com um sorriso que para qualquer um que olhasse, se mostrava deveras verdadeiro. Eu não conseguia fazer outra coisa, senão, sorrir também, perguntando coisas como, E você não fica envergonhada, Que nada, ela retorquía com um soquinho no meu braço.

Ai claro, você, meu querido amigo ou amiga confidente pode até estar se perguntando, por qual motivo eu resolvi manter essa distância da nossa amizade. Bom, eu sou casado. E na verdade, apesar de não parecer, eu um dia desses... bom... Também não vou dizer que não fui traído porque a história ia ficar imensa e agora eu estou falando aqui apenas dessa minha amiga tímida que de repente conseguia esconder bem alguma decepção de eu não ir, ou simplesmente, de não mostrar algum sentimento de desprezo porque ela realmente não queria que eu fosse, e só me chamou por educação. Confesso que não entendo bem e nem tampouco consigo adivinhar pensamentos, mas aposto que algum dos dois sentimentos ela agora, conseguia esconder com perfeição. Lembro quando a primeira vez que ela me perguntou a hora, no ponto, enquanto eu olhava para o relógio eu podia ver no canto do meu olho um certo descontentamento no semblante dela por eu demorar tanto de responder -- e talvez por isso mesmo, eu tenha demorado um pouco mais e aproveitado para continuar puxando outros assunto. Talvez sobre a chuva? Acho que sim. De certo que lembro de em quando o sol pairava sobre nossos semblantes enquanto o ônibus não chegava, que eu conseguia adivinhar melhor, mesmo a timidez dela de eu estar conversando coisa que de fato, nesses primeiros dias, ela não queria de jeito nenhum. E agora a vejo, conversando com o cobrador, com o motorista, como se sempre fossem amigos, coisa que jamais eu imaginei ver ela fazendo. Ás vezes me pergunto que tipo de mágica tem essas aulas de teatro da "senhorita Gertrudes" (nomeei assim na minha mente porque eu realmente não lembro bem aonde ela toma essas aulas... ela sempre me diz fazendo o mesmo muchocho, mas eu sempre esqueço) para fazer aquela coisa tímida de repente estar pulando e saltando, conversando com todo mundo -- bom, não bem pulando, mas vocês entenderam aonde eu quis chegar.

Não, não vou falar de meu casamento nem de minha pulada de cerca, e nem tampouco do meu chifre. Finjam que eu não toquei no assunto, exatamente como esta minha amiga agora finge que mantém algum interesse enquanto conversamos. Se antes das aulas da senhorita Gertrudes ela realmente não escondia, agora nem tem sombra alguma de que ela está chateada com meus papos sérios sobre números, contas e, Nossa por que esse ônibus não chega no horário? Aos poucos, mas não tão rápido como se eu nunca viesse a perceber ou muito lento como se eu fosse idiota e não notasse -- eu sei, nenhuma das sentenças tem sentido -- ela foi aos poucos e de forma... como diria... alegre? Deixando de falar comigo. Ela agora é amiga de outras pessoas no ponto de ônibus e de vez em quando umas amigas dela -- ela agora tem amigas... esqueci de contar? -- aparecem para buscar ela num carro 1.0 vermelho. Eu quase consigo sorrir ao imaginar o santo remédio que têm essas aulas da senhorita Gertrudes, e um dia, quando não apareceu carro algum, ou ela estava meio doente para conversar com outras pessoas, eu consegui um tempinho para conversar com a agora, "dona das conversas". Perguntei a ela aonde ficava a aula, quanto se pagava e em qual peça ela estava. Ela me disse que depois da 6º ela havia saído, afinal, ela conseguiu o que tanto queria, ou seja, abandonar de vez o mundo escuro e letárgico da timidez. Ela me deu o telefone, me disse aonde era e tudo mais. Depois trocamos mais um papo antes de eu subir para minha condução lotada.

Fiquei pensado na viagem e em boa parte do trabalho enquanto atendia o pessoal para fazer as contas -- falei que eu trabalhava com números -- se eu deveria também fazer aquelas benditas aulas. Bom... minha amiga do ponto agora não é mais tão minha amiga, mas ela, conseguiu alcançar o que tanto queria, ou seja, amigos melhores. Ela agora consegue não demonstrar o que realmente sente, e faz exatamente aquilo que se espera que alguém faça. Talvez ela o faça de maneira natural ao gritar pedindo para o motorista abrir a porta para ela entrar no dia que atrasa... Ou será que não foi todo um processo bem pensado, aonde ela começou falando com ele, porque sabia, que mais tarde ele o ajudaria nesses dias que ela chegaria tarde e as amigas, não iriam buscá-la? E essas amigas? Será que também tudo não começou com um ato bem pensado de ser amiga delas, porque sabia que mais tarde não iria mais ir de ônibus lotado? Será que tudo não é feito de um caso pensado? Talvez eu esteja indo um pouco longe demais... Mas toda vez que olho para ela dizendo exatamente o que se espera que se diga, "Motorista se você não abrisse eu não sabia o que ia fazer", de modo tão natural, tão perfeito, tão nítido, como se ela houvesse antes, treinado para isso. Atuado. Atuando.

Na verdade, todos nós fazemos papéis. Eu aqui, fazendo contas para alguns clientes, tenho de cumprir o meu. Assim como na vida, quando saio com meus amigos, tomo umas, volto para casa na espera que não encontre a bela surpresa de estar sendo traído novamente. Tudo simplesmente ensaiado, na espera sempre de se saber e se ouvir respostas certas. Como se fôssemos estudantes do primário e teríamos de dizer a tabuada e não abecedário, na hora da tabuada. Tudo isso que passamos, como até um simples apertar de mão com um sorriso, ou um pedir desculpas bem calculado para alguém que se constrangeu, porque oras, é exatamente isto que se espera ser feito de alguém que quer o perdão: um pedido de desculpas bem feito, humilde e de certa forma, pomposo. Ás vezes paro para pensar... e se fôssemos realmente sinceros? O que será que diríamos uns para os outros? Alguns... porque não podem falar, falam com os rostos. Como minha outrora amiga tímida, que quando ela me pediu as horas e eu demorei para responder ela fez uma verdadeira cara feia -- coisa que agora acho que ela só faz quando está cagando ou transando. Será que esse mundo é um mundo de atuações que não permite nem caras feias?

Posso não ser lá muita coisa, mas lembro quando li uma poesia sobre mascaras. Acho que a coisa é um pouco pior do que estarmos apenas mascarados, sabe? Acho que nós verdadeiramente atuamos. Alguns, atuam melhor do que outros, e estes, são os que chamamos de carismáticos. São os que têm carisma. Eles sabem exatamente dizer o que se que tem dizer na hora certa. Mas eles fazem isso com um monte de gente e não apenas para uma pessoa quando se quer o seu perdão, ou subir no ônibus ou que se vá ou não ir assistir uma peça chata de teatro. Mas como eu falei, no fundo, lá no fundo, todos nós atuamos. Só que alguns melhor do que outros. E mesmo esses ruins, podem aprender a atuar tão bem que podem até conseguir uma carona às 6:00 am com "amigas que se conheceu há menos de dois meses".

O quê? E se ela estiver sendo sincera e realmente for amiga delas, gostar do motorista e poxa, agora só não tem mais tanto tempo de conversar comigo? E se todos nós na verdade simplesmente não somos sinceros em tudo? Tudo é muita coisa. Acho que em algum momento, quando as pessoas que atuam bem, mas estão cansadas de atuar porque o fazem todo santo dia... Chegam naquele ponto sabe? Em que parar de atuar não é mais uma opção... Que ao se defrontarem com quem não se preocupa com isso (ou porque a outra pessoa simplesmente não sabe, porque atuar é difícil mesmo), elas desencanam e não querem mais conversar com quem não é ator, ou atriz. Até hoje eu me pergunto, o por que dela nunca quis me oferecer uma carona com as amigas...