995-O ÚLTIMO FESTIVAL DA CACHAÇA
Não se sabe até hoje o que realmente aconteceu no último “Festival de Cachaça” de Venda Velha. O evento, que terminou com a morte de um dos dois finalistas, aconteceu no final das festas de congadeiros, no mês de maio. O mistério permanece, apesar do competente atestado de óbito com causa mortis explícita da “falência múltipla dos órgãos vitais”, passado pelo doutor Ananias Godoy, um dos participantes do fatídico evento.
No final do concurso, que só era chamado de “Festival” pelo Totonho Gravatinha do jornal local “A Folha”, para dar mais força nos seus artigos e notícias, a disputa ficou entre os dois consagrados bebedores de cachaça: Mané Caninha e Carlão Canhoto. Todos dois competentes enxugadores de garrafas, como, aliás, a meia dúzia de companheiros que foi ficando para trás na semana da grande bebedeira.
Dizem que houve fraude. A história corrente, passada de boca em boca, é que Carlão Canhoto foi protegido.
Zenilda se oferecera para ser garçonete no bar do Amadeu nos últimos dias do evento, quando o namorado Carlão já era apontado como um dos prováveis vencedores do concurso.
— Trabalho aqui só pra estar perto do meu nego, quando ele ganhar. — Com dengo e matreirice, conseguiu que Amadeu a empregasse.
Último dia do concurso. Aliás, última noite, pois que a disputa começava aí pelas sete da noite e ia até de madrugada. O bar do Amadeu estava cheio. Além dos martelinhos de pinga, corria a cerveja nas garrafas (ainda não havia a latinha) e as batidas, feitas pela mulher do dono do bar. Todos falavam alto, mesmo os que ainda não estavam “altos” pelas bebidas.
— Zenilda, me trás uma Antártica. Casco escuro!
— Me dá outra branquinha.
— Traz uma porção de mandioca frita.
Metida no avental branco, a moça, expedita, atendia a todos com sorrisos e requebros.
Dizem que houve burla no último dia. O assunto é falado à socapa, ninguém tem coragem de acusar ninguém, pois a confraria é unida e briosa. Mas conforme o diz-que-diz, a garçonete trocou por água da torneira a pinga da garrafa do namorado, isto por duas ou três vezes, no final da disputa, quando até os juizes já estavam mamados e desatentos.
Carlão Canhoto agüentou muito mais do que Mané Caninha. Estava inteiro quando o concorrente tombou sobre a mesa. Passava das duas da madrugada, e os dois bebiam desde as sete. O doutor Ananias, amante das branquinhas, amarelinhas e de todas as cores, estava mais pra lá do que pra cá; mesmo assim percebeu no ato a gravidade do estado de Mané Caninha.
— Ele desmaiou. Está suando frio. Vamos levá-lo para o hospital.
Meteram o homem num automóvel, que lá se foi, levando também o doutor e Totonho Gravatinha, que, naquela noite, perdeu sua preciosa gravata borboleta, mas não o apelido.
— É grave, doutor?
— Vou aplicar uma injeção de glicose assim que a gente chegar no hospital. Dependendo da reação dele...
Não houve reação. Mesmo recebendo na veia a glicose injetada, Mané Caninha morreu ao amanhecer. “De Falência múltipla dos órgãos vitais”, conforme o atestado assinado pelo companheiro de bar.
O que foi, de certa forma, o atestado de óbito da esbórnia geral que acontecia a cada ano, no bar do Amadeu, chamada de modo eufêmico por Totonho Gravatinha de “Festival de Cachaça”.
ANTÔNIO GOBBO
Belo Horizonte, 2 de novembro de 2006