O presente
O jeans novo comprado para essa data. Os sapatos de salto alto não eram comuns na vida dela, mas a ocasião pedia: quinze anos. Ela tinha necessidade de ver tudo do alto, o mais alto que pudesse. E foi esse o encontrado que compôs o visual da menina. Doze centímetros. Bonita, confiante, em plena adolescência. Não sabia, mas se equilibrava entre a mulher e a menina. Pela primeira vez, sentia parte do mundo dos adultos. Na verdade, já se sentira antes, mas fora colocada no seu lugar. Por anos, esperara por esse dia. Também não foram tantos assim, só quinze! Apenas quinze, escutara da mãe.
No seu quarto, o Chanel nº 5 impregnava tudo. A mãe gritou lá da sala:
__ Esse perfume é para ser usado à noite, e com cautela.
Não se importou, era nova, aprenderia. Tirou da embalagem a bolsa dois tons acima dos sapatos. A partir de hoje o celular, o estojo de maquiagem, o net tinham outros aposentos: a bolsa nova. Ergueu-a como se ergue um troféu e rodopiou, pelo quarto, um tipo de dança que despertaria curiosidade e desejo se estivesse em público. Realizou movimentos e passos utilizando a bolsa, como Salomé, um dia, misteriosamente, fez uso dos véus a esconder e expor seu corpo ao rei Herodes pela vida... de quem mesmo?
Tinha um encontro marcado com as amigas. Entre elas, alguém em especial. Gostava da pontualidade que lhe rendera um apelido: Britânica. Mas estava atrasada. Vestiu a blusa, também nova, cor nude. Achou a combinação perfeita com o jeans, monocromática, despojada, bem equilibrada.
Um discreto batom nos lábios, deste, gostava um pouco mais forte, mas a mãe achava meio vulgar. Pronto, um metro e oitenta de quinze anos, com salto em plena tarde natalícia.
O dia fazia um dueto com o sol em notas perfeitas. E anteviu seu look descendo a escadaria do metrô, na porta giratória do shopping, nos corredores elegantes. Talvez um lanche... ___ não, melhor só o suco. __ Não queria engordar. O corpo estava perfeito.
O pai beijo-a fingindo esquecer seu aniversário. Ela fingiu que não sabia da surpresa sendo preparada. A mãe dava as últimas na cozinha e gritou de lá: __Olha a hora.... Chegou, à porta, uma piscadela do pai para a filha.
O tilintar das pulseiras e o toc-toc dos saltos, no passeio, eram música para seus ouvidos. O ronco dos motores era rotina, a sirene da polícia inofensiva. Atravessou a rua olhando tudo de cima. Ouviu um estampido. Um tiro? Ouviu um grito. Ouviu um tropel. Impulsionou o corpo para alcançar a calçada. Imprimiu velocidade e alçou voo. Assistiu a uma correria. Viu muitos pés na altura dos seus olhos. As pessoas flutuavam. As pessoas estavam acima dela. Chegariam primeiro que ela que já estava tão atrasada...
O relógio disparava horas, minutos, segundos, frações impensáveis até ultrapassar seu limite e dar continuidade numa contagem regressiva em ritmo alucinante de dias, meses, anos que ficaram tão pequenos a se acomodar em uma das mãos.