A ordem natural das coisas

1931

A crise tinha se estabelecido.

Nos centros urbanos, fábricas e casas comerciais fechavam as portas.

Diariamente, centenas de trabalhadores perdiam seus empregos.

No campo, os fazendeiros se desesperavam diante de celeiros abarrotados de alimentos e nenhuma previsão positiva para a economia.

A ordem era cortar gastos.

Olívia brinca com os filhos da patroa. Tenta esconder a aflição.

Os patrões já avisaram que, diante da crise, terão de reduzir salários e mordomias.

Ela não entende bem.

O salário já é tão baixo e de quais mordomias eles estarão falando?

Deixou o filho em casa doente.

Febre alta.

A avó alertara:- Esse menino está com lombriga por causa do brinquedo.

Olívia retrucara, desde quando pobre tinha direito a ter lombriga?

Se pudesse até faria o gosto do caçula.

Bonzinho. Nunca ficava doente. Nunca pedia nada.

Os patrões com aquela conversa de reduzir salário e mordomia.

Reduzir mais o que?

A patroa ouve as badaladas do relógio.

-Olívia, prepara o meu chá.

As crianças reclamam. Querem continuar a brincadeira.

Antes de seguir para a cozinha, a empregada escuta a orientação de dona Maura .

-Não coma as bolachas hein, Olívia. São importadas.

O chá é servido na bandeja de prata. As xícaras são de porcelana.

Olívia lembra que precisa fazer umas compras de canecas de ágata ou alumínio para sua casa.

Com a “tal da crise e a redução de gastos”, acabará tendo de beber água na mão em forma de cuia.

Acompanha a patroa sorver o chá quente sem nenhuma inveja.

Seu pensamento está em casa, no filho doente, nas contas que estão para vencer.

A avó não tem mais idade para cuidar de criança. Ainda mais criança doente.

O marido, demitido da tecelagem, não ajuda em casa.

Fica aborrecida quando novamente é advertida sobre as bolachas.

-Estão contadas,Olívia.Com esta dificuldade pela qual estamos passando, não sei quando poderemos importar novamente.

As crianças solicitam sua presença.

A patroa avisa que a empregada poderá brincar só mais um pouquinho, pois tem de continuar os preparativos para o jantar de logo mais.

Tanta coisa pra fazer e ela brincando com crianças. O filho em casa queimando de febre.

Crise maldita!

Não entendia muito bem, mas já sentia uma raiva danada.

Por causa dela o marido estava desempregado.

Sem emprego ficava pelos bares bebendo.

O dinheiro que ela recebia, mal custeava os gastos básicos da casa.

Os patrões com aquele discurso de economizar ás custas dela, do motorista, do jardineiro.

O chá da tarde, com bolachas importadas, não podia faltar.

A noite aconteceria um jantar para comemorar o aniversário do seu Osvaldo.

Quando engomava o vestido da patroa quase lamentou a falta de estudo, de uma melhor profissão.

Desistiu.

O primo tinha se formado em primeiro lugar na turma e cadê que arrumava um bom emprego.

Ganhava a vida como vendedor em uma loja de tecido.

Dona Maura entra no quarto sorridente.

-Ei, Olívia.Uma coisa que vocês da pele morena fazem bem, são os serviços domésticos. Sente o cheiro de sua comida. Olha este vestido. Parabéns.

Olívia dá um risinho amarelo.

Vontade de fazer um monte de malcriação.

“Não tô vendo nenhuma morena aqui!"

Não pode.

Precisa dar sua contribuição para amenizar os efeitos da crise.

Ter o salário rebaixado. Comer as sobras dos patrões. Trabalhar por ela e pela babá que fora demitida.

Antes de perguntar se terá ficar a noite, a patroa a libera.

-Não precisará ficar , viu. Vai ter uma gente importante aqui. Achei melhor contratar um serviço mais capacitado.

Olívia sente raiva e contentamento.

Raiva da cara de pau da patroa, mordendo e assoprando.

Contentamento em poder ir para casa mais cedo para cuidar dos filhos, principalmente do caçula doente.

Desaforo, ter que cuidar dos filhos dos outros, enquanto o seu está adoentado em casa.

-As crianças ficarão com minha mãe. Dona Maura avisa.

Com medo de a patroa mudar de ideia, corre com o serviço.

Comida preparada, roupas engomadas, as crianças arrumadinhas para seguirem para a casa dos parentes.

Quando Olívia sai os primeiros convidados já estão chegando.

Carros modernos, roupas bonitas, um belo jantar os esperando.

Tudo parece normal.

Olívia parte apressada.

Sem crise ou com crise o mundo mantém a ordem natural das coisas.

Lucia Rodrigues
Enviado por Lucia Rodrigues em 09/03/2017
Reeditado em 09/03/2017
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