986-AS PECHINCHEIRAS

O dia do padroeiro de São Roque da Serra é 16 de agosto. No ano de 1959 a data foi escolhida para a inauguração da Agência do Banco do Brasil, um evento importante que marcava o início de uma nova era (pensavam políticos, comerciantes e agricultores) para a cidade e a região.

Todos os funcionários fundadores vieram de fora, transferidos de outras agências. Alguns, de cidades próximas, localizadas no próprio estado. Outros chegaram de longe, do norte e do sul do país. Com seus costumes, modos e sotaques, vieram enriquecer ou, no mínimo, variar o dia-a-dia da pacata cidade.

A chegada mais impressionante foi a do gerente, Antonio Severino Bastos, transferido da distante agência de Carolina, no Maranhão. Chegou com família numerosa: a esposa, dona Dolores, seis filhos, quatro sobrinhos e duas mocinhas agregadas, que ajudavam na lida da casa.

O casal logo se integrou com os demais, o que era natural, dada a cordialidade inerente aos habitantes de São Roque. Mas sempre existe aquele período de adaptação, quando, por vezes, algumas diferenças sobressaem e podem causar desconforto e até estranhamento.

Foi por conta de tais diferenças que Tonico Bastos e dona Dolores se viram envolvidos numa querela envolvendo as esposas dos demais funcionários e de boa parte das mulheres da cidade e os feirantes.

Caso seguinte. Segundo o próprio Tonico Bastos, o custo de vida (naquele tempo não se falava em inflação) no interior do Maranhão era elevadíssimo, além de constante escassez de frutas, legumes, verduras frescas. Quando chegaram em São Roque, ficaram maravilhados com a quantidade e os preços acessíveis dos produtos caseiros. Na feira-livre os produtores — pequenos sitiantes e proprietários de chácaras ao redor da cidade — apresentavam a produção de verduras e legumes, frutas da estação, ovos, frangos para o abate, doces caseiros e coisas do gênero. Dona Dolores ia à feirinha todos os dias e, maravilhada com a quantidade e os preços, não escondia seu espanto.:

— Mas está tudo muito barato. Olha esta penca de bananas, por cinqüenta centavos! Veja ali, Severino, aquele frango por dois cruzeiros. Que barateza! — Os comentários se sucediam, conforme passavam pelas barracas diversas da feira.

Ora, os feirantes tomaram boa nota dos comentários da “mulher do gerente do Banco”. Para eles, era uma opinião de valor, de uma senhora que sabia das coisas. Por isso, foram tratando de ajustar os preços conforme as apreciações da ilustre dama. Um dia, as bananas subiram de preço; no outro dia, foram os ovos. O frango disparou de cotação e os legumes, que duravam menos, saltaram de preço. Os preços das verduras, facilmente perecíveis, também sofreram uma pequena alteração para mais.

As outras freguesas, freqüentadoras da feira, logo observaram que a causa da elevação dos preços estava diretamente ligada aos comentários de dona Dolores. Começou um cochicho entre elas.

— Quem é ela pra ficar achando isso e aquilo?

— Foi só ela chegar, ceis viram? Os preços dos feirantes dispararam.

— A gente precisa tomar uma atitude.

Zuleika Pontes, mulher do coletor estadual, sem papas na língua, um dia topou com dona Dolores num canto da praça onde se realizava a feira. Foi curta e grossa:

— Ou a senhora pára de falar que tá tudo muito barato, ou não vem mais à feira.

Pega de surpresa, dona Dolores não teve resposta na hora. Foi se queixar com as amigas, as esposas dos colegas do marido.

— Oxente! Num se pode mais ter opinião por aqui? — Relatou o ocorrido. As amigas não quiseram culpá-la, muito embora reconhecessem que Zuleika estava com razão.

— Vamos fazer o seguinte. Ninguém dentre nós (e isto era dirigido especialmente à dona Dolores) vai falar que isto tá barato, que aquilo tá bonito, essas coisas. E vamos pechinchar. A partir de agora, vamos pechinchar tudo, conseguir que os feirantes voltem a cobrar o preço anterior. Se não, a gente não compra, e eles ficam com as mercadorias apodrecendo nas bancas.

Dito e feito. As esposas dos funcionários começaram a pechinchar. Logo, as outras freqüentadoras da feira também passaram a regatear nos preços e os feirantes se viram sem alternativa. Tiveram de vender as mercadorias pelos preços antigos.

Foi então que João Bananeiro, com banca exclusivamente de bananas, não querendo baixar seus preços, começou a ter prejuízo. Homem atilado, logo descobriu o ardil das freguesas, chefiadas pelas mulheres dos funcionários do Banco do Brasil.

— Essas donas precisam parar de pechinchar, ou vamos à falência. — Começou a falar com os colegas. Bom de argumentação, logo convenceu os feirantes a se reunirem para tomarem providências contras as “pechincheiras”.

— Que é que podemos fazer? — Perguntou Zé Prequeté, dono da banca de ovos e frangos.

— A gente sabe que esta história começou com as mulheres dos funcionários do Banco do Brasil. Vamos lá falar com o gerente.

E foram. Depois do almoço, tão logo a porta da agência foi aberta, cerca de dez feirantes, João Bananeiro à frente, adentraram-se e foram direto à sala do gerente.

— Vamos entrando. — Tonico Bastos, surpreso, levanta-se e estende a mão para o líder, que foi direto ao assunto.

— Óia, seu gerente, tamos aqui pra dizer que, ou as patroas dos funcionários do banco param de pechinchar, ou nóis num vendemos mais pra elas.

ANTONIO GOBBO

BELO HORIZONTE, 21 DE SETEMBROD E 2006

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/03/2017
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