Casamento virtual e festa real
Eu sempre teclava com Alice. Era bom fazê-lo. Às oito da noite lá estava eu, bem acomodado à frente do computador, navegando sem rédeas na NET. Aos sábados e domingos, o tempo que eu dispensava para teclar era limitado. Esquecia de comer, nem sentia sede. As ondas do brinquedo quando me envolviam era de tal jeito que tornava-se difícil sair dele. Alice era uma companheira virtual e tanto. Acreditava-nos, pelo que sabíamos um do outro, que dificilmente nos encontraríamos algum dia. Ela na Nova Zelândia, eu em minha pequenina Maceió.
Às vezes eu me sentia já casado com ela. Deixava nos depoimentos do Orkut, as anotações lembrando-me de minhas obrigações, sociais e trabalhistas. Pareciam possuir uma convivência marital. E quando a saudade apertava, falávamos ao telefone. Ela era quem ligava. Sabia que eu não dispunha de dinheiro suficiente para esses gastos.
Eu teclava com ela e punha nas palavras todos os meus sentimentos. Sua foto me hipnotizava, e eu ficava a olhá-la por minutos sem piscar os olhos. Gostava muito desse nosso relacionamento virtual com cheiro e cor de realidade. O telefone era o maior cúmplice de que éramos reais mesmo!
Quando a mãe dela morreu em um acidente de trânsito choramos muito ao telefone. Eu não a entendia quando ela me dizia:
- Bem que você poderia esta aqui agora consolar-me...
- Eu, filha? como chegar até a tua cidade gelada?
E alguma coisa me descaracterizava o decurso. Eu instantaneamente queria estar ao seu lado fisicamente. Era por demais estranho o que eu sentia. O virtual apequenava-se e era como se sentisse o perfume dela rondando a saleta onde eu estava teclando. Coisas da NET, pensava, desacreditando ao mesmo tempo, pensar que podia ser verdade, a que vivíamos.
Divertimos tanto, criando personagens falsos para navegar cheios de asas na NET. Eram os chamados Fakes. Ela se punha como homem e eu como mulher. E quantas vezes não conversávamos, ela e eu, como ilustres conhecidos e meio a tantos outros amigos virtuais. Simulavam desentendimentos, flertávamos, concordávamos, como se aquilo que fizéramos fosse natural, quase normal.
Certo dia, uma segunda-feira de maio, a primeira, relembro, o meu PC foi infectado por um vírus terrível. Perdi todas as informações dos meus amigos virtuais e, conseqüentemente, as dela. A essa época ainda não nos falávamos ao telefone. Passei loucos três dias até reencontrá-la. A minha sorte foi Raquel, uma vizinha minha que gostava muito de mim e que me confortou, dizendo-me as palavras que, realmente, eu necessitava ouvir. Foi quando senti pela primeira vez que estava viciado na NET e apaixonado por Alice. Cheguei a chorar de tristeza. Achei-a na pagina de uma amiga em comum, a única que tinha o endereço fixa e telefone. Era uma professa de História como eu.
Foi uma grande festa virtual o nosso reencontro, cuidei em por no meu caderno de anotações o endereço dela, seus dois perfis virtuais gravados entre os meus amigos preferidos.
- Até onde iremos levar essa nossa amizade/namoro?
- Não sei, Zenon, mas não me preocupo muito com isso não.
- Não pensa em vir morar no Brasil?
- Nunca! Seria mais fácil você vir morar comigo. Já pensou nisso?
- Não posso!
- Por quê?
E entrava a madrugada e lá estávamos agarrados aos mauses, navegando infrenemente, caiando as boas sensações que as palavras que trocávamos nos ofereciam.
E tudo era sempre assim e os meses se passaram e resolvemos nos conhecer. Eu havia juntado, por dois anos, os dólares apenas para a passagem de ida. Ela havia me prometido que pagaria a volta e quanto à estada, seria em seu apartamento, sem custos para mim. Nem com as roupas de frio eu me preocupei. Ela já havia comprado, segundo ela, o que eu necessitava para lá ficar os quinze dias programados.
Era próximo do Natal. Eu estava ansioso com os preparativos da viagem. Passagem comprada, passaporte pronto, contas do mês pagas, família avisada, restava-me apenas a festinha que alguns amigos da rua iriam fazer como despedida.
Estava levando as alianças de presente, as de noivado ou casamento, ela seria a dona da decisão. Eu a amava perdidamente. Minha dependência era real; meu amor, mais ainda.
E dois dias antes da viagem houve a festinha na casa de Henrique, um vizinho meu. Havia umas dez pessoas em minha despedida. Coisa simples, mas, alegre. Tomávamos batidas de caju e cajá, já era mais de meia-noite, todos alcoolizados, a alegria fazendo a alma da festa e eu feliz. Minha vizinha, Raquel, abraçou-me como nunca o fizera antes e beijou-me à boca. Fiquei estupefato. Ela namorava um outro amigo meu, o Izidio, que passivamente estava entre nós. Vi meu amigo sorrir para mim.
- Izidio, você feliz o que ela fez comigo?
- Muito!
E, sem entender, aceitei um seu segundo beijo ardente. Abraçou-me mas fortemente. A viagem que faria surtia efeito bom.
- Você sabe porque eu estou viajando, não sabe, amiga?
- Claro que sei e bem mais do que você.
- Ainda bem. Eu não poderia ter beijado você. Alice não poderá saber sobre isso nunca!
- Também acho.
Decidimos acabar a festinha. Algo estranho havia no ar. Saíram todos e foram para suas casas. Ficamos Raquel e eu. Estranho, pensei.
- Não vai para sua casa, amiga?
- Quero outro beijo bem parecido com aquele que lhe dei.
- Que futuro terá, amiga, ao se divertir assim comigo? Sou comprometido...
- Quero assim mesmo!
E beijei-a intensamente. Não sei como, mas fi-lo prazerosamente, pensando eu que estava beijando Alice.
E não suportei saber que minha vizinha Raquel era a Alice que eu pensava morar tão longe, onde iria encontrar a felicidade. Olhei-a como era e vomitei sobre ela as palavras de desgosto.
- Você não presta!
- Mas, meu amor, nós nos gostamos tanto...
- Detesto você; amo Alice!
- Mas eu sou Alice...
- Você é uma mentirosa!
E assim, depois de tudo saber, das verdades e das mentiras, passei a odiar meu PC, a Nova Zelândia e a falsa Alice. Raquel tentou por tudo aproximar-se de mim, namorar-me. Eu me mudei de onde morava e nunca mais a vi. Troquei a NET pela mãe dos meus dois filhos, estou muito feliz, mas o pior é que continuo apaixonado por Alice e ao mesmo tempo odiá-la. Pode?!