CAMINHO CHEIO DE LUAR
Depois do segundo dia de passeio pelos recantos da Serra da Canastra, cheguei à recepção da pousada e o rapaz do atendimento me disse que Maria, a minha irmãzinha, tinha deixado o recado de que acabara de voltar do encontro com os poetas e estava me esperando, na casa do sítio, para tomarmos juntos, o café da manhã.
Disse-me também que ela havia deixado um cavalo, para eu não precisar andar tanto com o frio do amanhecer.
O animal era desses que não gostam de sair de casa e que a qualquer descuido, voltam direitinho para dentro do curral e por ser muito manso, eu não correria nenhum perigo de ser jogado ao chão.
Mesmo consciente da minha imperícia em montar a cavalo porque já se vão mais de quarenta anos desde a última vez que me aventurei a tanger gado, resolvi não deixar de experimentar a agradável sensação que consiste em montar num cavalo bom de passada.
Tomei um banho esfregado com bucha vegetal e sabão de barra para remover a cranha generalizada e o bodum de pai de chiqueiro.
Estava cansado, mas não me deitei na cama com colchão de capim amaciado pelos muitos anos de uso porque se o fizesse, só acordaria pela manhã, então com toda disposição de grande aventureiro, coloquei na mochila uma muda de roupa e fui perguntar ao rapaz da recepção da pousada onde estava o meu cavalo.
- O senhor vai agora de noite, é? Com essa noite escura assim? O senhor não tem medo de nada?
- Medo do quê, homem? Eu vou sim. Com esse luão e com o frio da noite, tenho a certeza de que o passeio vai ser dos melhores e também quero estar na casa do sítio para ser acordado pelo canto dos galos e tomar leite mugido, logo bem cedo.
Ele me levou para os fundos da pousada onde havia um cercado.
- O senhor sabe colocar a cela?
- Não. (respondi de pronto) Faz muito tempo que fiz isso e já não garanto que possa acertar a fazê-lo outra vez.
- Eu coloco para o senhor. Pode deixar...
Rapidamente o cavalo estava arreado. Antes de montar, perguntei se o rapaz sabia o nome do bichão.
- É Precioso. O que o senhor falar ele atende, nem vai precisar usar as rédeas. Ele sabe o caminho de casa, mas se o senhor cair, não tem como errar. É só seguir em frente pela estradinha de barro, depois da segunda ponte de madeira entre na porteira da direita. A casa de dona Maria fica logo depois do capão de mato.
Com a ajuda de um banco, sentei na cela e o rapaz abriu a porteira do cercado com a advertência:
- Ó, se o senhor cair da cela vai ter que ir a pé porque Precioso não vai lhe esperar de jeito nenhum...
Conforme o que foi dito ao seu respeito, Precioso era realmente um excelente animal. Passo lento, macio, de andadura confortável e nem precisava guiar porque ele sabia exatamente para onde deveria me levar.
A cidade logo ficou para trás e na solidão da estrada, fui admirando a paisagem revelada aos poucos pela luz difusa da lua em quarto crescente. Nuvens grossas, negras, vez por outra, toldavam a luz da lua, mas Precioso não precisava de lanterna para ver o caminho que ele sabia de cor.
O silêncio das coisas imensas quebrado pelo canto dos grilos e dos sapos era como um coral de vida selvagem fazendo a trilha sonora do caminhar ritmado pelas batidas dos cascos de Precioso na terra da estrada.
De repente, eu ouvi, nitidamente, outros passos de algum cavaleiro. Não sei se em sentido contrário ou se vinha de trás, se aproximando, pelo mesmo trecho da estrada por onde já havíamos passado.
Não eram passos de andadura como os de Precioso, parecia mais um trote como de alguém que tem pressa de chagar.
Mas o tempo foi passando e nada do cavaleiro aparecer.
Sabe como é gente de cidade que nunca está no escuro, né?
Como o cavaleiro nunca aparecia, comecei ficando com medo porque também me lembrei de todas as histórias de assombração de estrada que já ouvi na vida.
Para completar, ouvi ao longe o uivo de um animal que poderia ser cachorro, mas também poderia ser lobisomem.
Quando a luz da lua clareou outra vez, vi que as orelhas de Precioso estavam murchas.
Cavalo é bicho que sente as coisas, pensei em apertar as rédeas para que ele galopasse, mas lembrei-me também da minha imperícia e se eu caísse da cela, Precioso não iria parar para me acudir.
Era preferível esperar para ver o que iria acontecer.
Felizmente já havíamos passado a segunda ponte e mais adiante, Precioso abriu a porteira com o peito e pegamos a estradinha.
Eu não sei o que foi que ele viu, ou sentiu, mas logo depois da porteira, antes do capão de mato, o bicho desembestou num galope furioso que quase me derruba.
Soltei as rédeas, segurei na cela com as duas mãos e inclinei-me para frente deixando o peso do corpo só nos estribos para aliviar os saltos que daria se tivesse ficado sentado.
Precioso só parou junto à porteirinha da cocheira.
Com sacrifício de principiante, desci da cela e fui para a varanda onde Maria estava me esperando com o candeeiro na mão.
- Chegue para perto do fogão que a noite está muito fria e você está todo arrepiado...
Nós estávamos esperando você só pela manhã, mas vou assar uns bolinhos para acompanhar o café.
Você gosta de brevidade?
Ou prefere que eu esquente a galinhada enquanto você come o doce de abóbora, ou prefere doce de leite com queijo?
Tá com sede?
Quer um pouco d’água?
É da bica de compadre Justino, água doce e boa, e a nascente está cercada por causa dos bichos.
A água está bem limpinha.
Vou fazer um pouco de pão de queijo, fica pronto logo.
Você gosta de pamonha?
Mas não fique aí calado, conte como foi a viagem para cá...
- A viagem foi maravilhosa, muito tranquila só tinha eu na estrada. Precioso é um bom companheiro de viagem. Não fala a nossa língua, mas entende tudo, sabe tudo, sente tudo...
Só lamento não ter visto direito a paisagem por causa das nuvens, mas o coro dos sapos estava lindo demais da conta Sá...
(Claro que eu não ia passar a vergonha de confessar que faltou bem pouco para o coração sair pela boca e eu morrer de medo por causa do cavaleiro fantasma...).
Para Maria, minha irmãzinha, Mineira antevendo a visita que está prometida e que qualquer dia desses será realizada.