Brisas da meia-noite

BRISAS DA MEIA-NOITE
Miguel Carqueija



Era amena aquela noite de outono e eu não conseguia dormir ou mesmo nem queria, eis que o espaço vazio no leito me espicaçava e angustiava. Por fim, presa de angústia crescente, eu me ergui e mudei rapidamente de roupa, disposta a sair para espairecer.
Nunca conheci tão bem os homens como no dia em que Bruno me abandonou. Embora não houvesse explicitado tal coisa antes do matrimônio, depois ele deixou bem claro que não queria filhos e não estava disposto a aturar (sic) crianças ou gastar dinheiro com elas. Depois que eu engravidei tivemos brigas terríveis, pois ele me acusava por não haver tomado a pílula e de tê-lo “traído”.
E eu amava Bruno. Amei, porque o amor morreu no dia em que ele declarou que ia embora da cidade e não me daria pensão alguma. Que eu nem ficaria sabendo o seu endereço e portanto não conseguiria que o citassem.
Breve eu teria de me licenciar do trabalho e talvez nem conseguisse voltar. Retornar à casa de meu pai, recém-casado em segundas núpcias, poderia não ser conveniente pois eu teria de conviver com uma jovem madrasta, pouco mais velha que eu, e que não parecia ir muito com a minha cara.
Então que fazer?
É claro que a criança estava garantida. Quando Bruno me sugeriu abortar, pouco faltou para que eu lhe cuspisse na cara. Creio que a minha firme decisão causou a sua debandada.
Como eu pudera me enganar tanto com uma pessoa?
Agora, revendo a nossa convivência, eu percebia com clareza as idiossincrasias (como o hábito de dizer palavrões e o desinteresse e desprezo pela religião) que deveriam ter-me alertado. Mas eu estivera cega, a paixão é uma coisa que causa cegueira e nos leva a becos sem saída.
Caminhei sob a lua crescente, a pouca distância que separava minha ruazinha da praia. Cercavam-me o silêncio e a escuridão, um pouco quebrada pelo suave luar e pelas distantes estrelas. Então meti os pés na água fria, esperando obter algum alívio em minha angústia.
Por um instante, ou talvez vários minutos, a voz da sereia chamou-me através do marulho das ondas, as incessantes ondas marinhas. À minha frente a imensidão azul, ora escura, que ocultava os grandes abismos onde eu poderia sumir para sempre...
Mas repeli a tentação. Matar a mim e à criança em meu seio, enquanto um canalha quem sabe engravidava outra mulher? Seria aceitar facilmente a derrota e ofender a lei de Deus, que proíbe o suicídio.
Estava nessa reflexão angustiada quando escutei um gemido, um choro abafado. Espantada, espiei em volta e avistei um cachorrinho branco, porém sujo, que me fitava com ares também de muito espantado.
Afastei-me da água e me acocorei na areia, olhando para ele.
— De onde você veio? Parece tão deprimido quanto eu!
Estendi a mão direita. Ele abanou a cauda e, choramingando, aproximou-se a medo. Farejou-me a afinal permitiu que eu o tocasse. Em poucos segundos já me lambia, confiado.
— De onde terá vindo? Como está magro e sujo...
Ver um bichinho desses abandonado é de cortar o coração. Assim, após algumas festas eu me ergui, olhei em volta e tomei uma decisão:
— Quer vir comigo? Você precisa de um banho e de comida, e eu preciso de companhia.
E assim retornei para casa, com minha criança no ventre e agora também um cãozinho muito alegre por ganhar um lar e uma dona. E sentia-me mais otimista: quem falou que eu perderia o meu emprego? Por que me preocupar antes do tempo?
Deus é grande, e tudo se arranjaria...





Rio de Janeiro, 3 a 15 de dezembro de 2016.


imagem pixabay/jill111
Miguel Carqueija
Enviado por Miguel Carqueija em 05/03/2017
Reeditado em 29/10/2020
Código do texto: T5931898
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