O jornal
E no meu primeiro dia como repórter contratado do jornal, perguntei por W., cuja coluna sobre Artes eu acompanhava de Viena. Olharam-me atravessado, e percebi que havia cometido uma gafe.
- W. tinha um quarto de sangue judeu, pensei que soubesse - explicou-me em tom paternal J., o chefe da redação.
Não, eu não sabia, expliquei. E me declarei surpreso, mesmo sabendo do alcance das leis de segregação racial.
- Sempre imaginei que aqui, considerado como refúgio do pensamento liberal, um intelectual como W. pudesse encontrar refúgio - ponderei.
J. lançou-me um olhar pensativo.
- A nossa relativa liberdade face ao regime veio através de algumas... concessões - disse. - Principalmente, tivemos que demitir os judeus, e os meio-judeus como W.
- E evitar temas sensíveis ao governo?
- Podemos falar de praticamente tudo, desde que de forma respeitosa.
- Sem críticas?
- Críticas são permitidas, mas sem ataques pessoais.
- Críticas ao regime?
- Não. Em hipótese nenhuma - J. foi enfático.
- Análises positivas sobre governos ou personalidades estrangeiras?
- Apenas se forem nossos aliados. Caso contrário, recomendamos usar um tom neutro ou se abster de dar a notícia.
O destino de W. voltou-me à mente. Perguntei se sabia o que fora feito dele após a demissão. Muitos haviam deixado o país antes da guerra, temendo pelo pior.
- Infelizmente, esse não foi o caso de W. Soube que foi preso e levado para... bem...
Olhou-me com ar constrangido.
- Circulam boatos sobre campos de internação para judeus, comunistas e outros inimigos do regime...
E num tom de desculpas:
- Mas não há nada provado. E não podemos escrever sobre boatos, não é mesmo? Somos um jornal sério!
- Naturalmente - aduzi. - E imagino que investigar tais boatos vá contra a política do jornal.
J. remexeu-se na cadeira, em desconforto.
- É preciso que tenha em mente que nosso público não deve se interessar por tais temas políticos. Trocamos a coluna de Artes pela de Rádio e Cinema, justamente por conta disso. Você pode falar... por exemplo... dos boatos envolvendo a atriz M. e o ministro H.
- Temos fofocas em vez de Artes? - Ergui as sobrancelhas.
- Estamos em guerra - J. recostou-se em sua cadeira. - Um pouco de escapismo contribui para a felicidade do povo.
- Ignorância é felicidade - retruquei.
- Você está certo, - disse J. - e se soubesse dos horrores trazidos por alguns destes boatos, provavelmente preferiria permanecer na ignorância.
- Sejamos todos felizes então - concluí.
[04-03-2017]