O Bibliófilo

Dois Amigos, Sam e Luiz Gustavo...

Eu estava no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, era uma quinta-feira de dezembro, tinha ido comprar os ingressos para o evento ao qual pretendia assistir com a minha esposa, Linda. O espetáculo aconteceria ali no teatro do CCBB no domingo à tarde.

Tratava-se da peça teatral “As três irmãs”, uma montagem inspirada no conto homônimo do escritor moçambicano Mia Couto.

Enquanto eu caminhava distraidamente, apreciando a beleza arquitetônica das linhas neoclássicas do prédio, não pude deixar de ouvir um homem discorrendo, com verdadeira paixão, sobre as peculiaridades da língua portuguesa.

Era um sujeito de boa aparência, talvez de uns quarenta e cinco anos, usava calça jeans, camisa polo azul, um blazer escuro, e tinha aliança de ouro na mão esquerda.

O tal homem estava parado num canto do salão principal, em frente a um quadro de avisos que anunciava o espetáculo teatral, além de obras literárias de Mia Couto. Falava para um grupo de seis jovens, dois rapazes e quatro moças, todos aparentando serem estudantes com menos de vinte e cinco anos.

Naquele instante, eu parei e, sem me importar de ser considerado um intruso ou um bisbilhoteiro, fiquei atento ouvindo o que o sujeito de boa aparência dizia:

— Senhores, quantas vezes vocês já ouviram que o português é uma das línguas mais difíceis do mundo?

— Eu concordo com essa teoria e cito apenas um simples exemplo: a arquitetura de conjugação dos verbos em português é muito mais complexa do que em inglês. — respondeu uma jovem de cabelos claros e curtos que, até então, não parava de digitar no celular.

— Bobagem! Em uma rápida pesquisa na internet pode se verificar que a nossa língua não está no grupo dos idiomas mais difíceis de aprender. Em seu livro recentemente publicado, “Viva a Língua Brasileira”, o escritor e crítico literário Sérgio Rodrigues aborda este assunto e explica que, de acordo com um ranking elaborado pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, do ponto de vista dos falantes de inglês, o português está situado no grupo dos idiomas fáceis, aquele em que se pode ficar fluente com até seiscentas horas de estudo. — disse o homem de blazer escuro.

— Padre Sam, então, mantendo como referência o cidadão que fala inglês, qual seria a língua mais complicada do mundo? Seria o húngaro? Que alguns intelectuais chamam de a língua do diabo. — perguntou um rapaz moreno trajando calça jeans, camiseta preta e um boné do estilo usado pelo soldado americano na guerra do Iraque.

— Há muitas informações sobre esse assunto na internet. Recentemente, pesquisei no Google e, se não me falha a memória, no grupo dos idiomas difíceis de aprender não constava o húngaro. Lembro-me do vietnamita, do russo, do tailandês, do mandarim, do japonês, do árabe, e do coreano. — respondeu pausadamente o homem de blazer escuro que fora chamado de Padre Sam, apesar da aliança de ouro na mão esquerda.

Tão logo o “Padre Sam” concluiu a sua resposta, uma jovem morena, bem vestida, quando comparada com os demais integrantes do grupo, de óculos e com cabelos presos lhe pergunta:

— Dessas línguas, citadas como sendo de difícil aprendizado, o senhor chegou a estudar alguma durante sua formação para o sacerdócio?

— Não. No seminário apreendi um pouco de latim, inglês e espanhol. Mas depois de ordenado presbítero voltei a estudar e passei no vestibular da UFRJ. Lá fiz, na Faculdade de Letras, o curso de graduação de português com habilitação em russo.

— O senhor é fluente em russo?

— Não, não sou. No Brasil ainda há poucos cursos de russo e são raras as oportunidades para praticar o idioma. Na época em que morei em São Paulo, que é o estado que abriga a maior comunidade russa no país, pratiquei um pouco o que havia aprendido no curso. Aqui no Rio é difícil encontrar uma pessoa falando ou que fale russo. — concluiu o sujeito de boa aparência que a todo instante era chamado de padre pelos jovens que o acompanhava.

Ao ouvir a conversa sobre o idioma russo, aproximei-me um pouco mais do grupo e, com um meio sorriso no rosto e educadamente olhando para o indivíduo de blazer, eu disse:

— Boa tarde! Como vai? Chamo-me Luiz Gustavo, peço desculpas pela intromissão. Inicialmente sem querer, mas depois por interesse no assunto, acabei ouvindo a sua conversa com esses jovens.

— Olá Luiz Gustavo! Meu nome é Samuel, mas todos me chamam de Sam, e esses são meus alunos do último período de letras. — ele respondeu educadamente e sem apresentar qualquer revolta com a minha abordagem.

Após apresentar-me a cada um dos jovens, citando os nomes e ou apelidos, Sam, retribuindo o sorriso, perguntou-me:

— Em que posso ajudá-lo? Como você estava ouvindo o que eu falava aos alunos, então percebeu que a nossa conversa era sobre a língua portuguesa e as dificuldades e facilidades de se aprender outros idiomas.

— Sim, Sam. Posso lhe chamar de Sam?

— Claro, mas sem confundir com o “Tio Sam” dos Estados Unidos, que diz “I Want You”. — disse Samuel num tom de brincadeira, mas sem os exageros que as pessoas costumam usar quando utilizam “frases feitas” para responder.

— Tudo bem, Sam. Pode deixar, não o confundirei com ninguém. Gostei de ouvir as suas explicações negando o dito popular de que a nossa língua é uma das mais difíceis de aprender. Mas o motivo verdadeiro de eu iniciar esta conversa é que também estudei russo e tive e tenho a mesma dificuldade que você, então quem sabe...

Percebendo a inquietação dos alunos, parei de falar de modo a permitir que Sam os atendesse.

Depois que ele comprou os ingressos para o espetáculo de domingo, orientou o grupo e despediu-se de cada um dos jovens, retornamos à nossa conversa sobre o idioma russo. Ficamos tão entretidos no assunto, que só depois de quase quarenta minutos de papo ali mesmo em pé no salão principal, por sugestão minha, fomos à biblioteca do CCBB, no quinto andar, local que eu conhecia e frequentava há mais de dez anos.

Acomodados em cadeiras confortáveis da sala de leitura, demos continuidade a nossa conversa que, de quando em quando, mudava o foco do idioma russo para literatura. Quando eu disse que havia morado e trabalhado em Moscou por cinco anos, a nossa conversa tornou-se quase uma sabatina, pois Samuel não parava de arguir-me sobre a cultura russa. Mas percebi que seu principal interesse estava ligado aos autores e livros daquele povo eslavo.

Após a fase da arguição oral sobre o cotidiano da vida na cidade das “Cúpulas Douradas”, passei a ouvir Sam citar e comentar títulos de obras literárias de diversos autores russos, não só dos mundialmente conhecidos, mas também dos poucos ou raramente lidos fora da Rússia. Impressionou-me o conhecimento dele sobre os romances e os contos escritos pelos autores eslavos.

Ele perguntou-me sobre livros e autores mais lidos na Rússia na época em que lá morei. Pensei e respondi:

— Não é uma pergunta fácil. A leitura para o povo russo é um hábito que chega ser quase um ato compulsivo. Era praticamente impossível ver uma pessoa que não estivesse com um livro ou uma revista nas mãos. Posso afirmar, sem medo de errar, que nos transportes urbanos em Moscou, principalmente no metrô, de cada dez pessoas nove estavam lendo. — e complementei a resposta dizendo:

— Por isso, a Federação Russa tem o terceiro mercado editorial do mundo.

Quando acabou de ouvir a minha explicação, o meu “quase amigo”, pois já estávamos conversando por umas três horas seguidas, insistiu:

— Diga-me pelo menos o nome de um livro citado pela mídia na época em que você morava em Moscou.

— Sam, voltei para o Brasil com a minha esposa Linda há nove anos, então, sem pesquisar na internet fica difícil de responder, mas vou lhe recomendar um autor que li e vi por ver muitas vezes seus livros nas mãos das pessoas no metrô, nos restaurantes, nas calçadas e em diversos outros lugares, chama-se Boris Akunin, nascido na Geórgia.

Gostei dos romances dele que comprei. Um foi “Leviatã”, no idioma original do autor. O título do outro, acho que era “A Morte de Aquiles”, esse em inglês.

Enquanto eu falava, percebi que Sam consultava o celular. Aí por curiosidade perguntei:

— Está checando no Google as obras de Akunin?

— Não! Claro que não. — ele respondeu imediatamente e com total convicção no que dizia.

— Estou verificando no arquivo de controle dos meus livros, no “Dropbox”, se possuo um desses romances que você citou.

Não acreditando muito no meu amigo, virei à cabeça para olhar a tela do celular. Ele prontamente se posicionou, de modo a permitir que nós dois visualizássemos o smartphone, e disse:

— Olhe Luiz Gustavo, de Boris Akunin, tenho somente “A Rainha do Inverno”.

— Esse eu li aqui no Brasil, há cinco ou seis anos. É uma história interessante sobre suicídios de jovens em Moscou. Eu gostei.

— Você gostou Sam? — perguntei sem tirar os olhos da planilha de controle de livros.

— Para ser sincero, apesar da minha paixão pelos livros e autores russos, não tenho certeza se já li Akunin. — ele respondeu tranquilamente sem receio de ser mal interpretado.

Depois que Samuel mostrou-me o arquivo digital de controle da sua biblioteca particular, fiquei impressionado com a quantidade de obras literárias do acervo. Ele possuía mil cento e quatro livros de autores russos, alguns escritos em cirílico, outros em português e a maioria em inglês.

Perguntei se ele controlava, em estantes distintas, os livros lidos e os ainda não lidos. Com a mesma sinceridade que usou sobre “A Rainha do Inverno”, disse-me que lia bastante, mas não separava os livros. Tinha, sim, uma relação das obras literária que desejava obter.

A sala de leitura ainda recebia a claridade dos raios solares do verão carioca, quando Samuel olhou para celular e disse:

— Já são quase dezenove horas.

Então, ele pegou a sua bolsa tiracolo de couro, que estava pendurada na cadeira, abriu-a, retirou dois livros e um caderninho de anotações no qual registrou os nomes dos romances de Akunin citados por mim, e já pronto para digitar no celular perguntou-me:

— Posso anotar o número do seu telefone?

— Sim. Também gostaria de anotar o seu. Se você tiver o WhatsApp fica bem mais fácil de nos comunicarmos. — eu disse.

Em seguida, pedi para dar uma rápida olhada nos livros que ele carregava na bolsa. Tratava-se de dois romances de Amós Oz, um dos mais importantes intelectuais e escritores de Israel, “A Caixa-Preta” e “Judas”. Eu já havia lido ambos, então perguntei qual deles ele estava lendo.

— Não, não estou lendo. Trouxe-os porque um aluno, que não veio ao evento de hoje, havia me encomendado. — respondeu Samuel sem dar continuidade nem importância ao assunto.

Antes de nos despedirmos, a conversa naturalmente cambou para o cotidiano de nossas vidas: profissão, trabalho, família, projetos pessoais, sonhos, realidades...

Assim, fiquei sabendo que Samuel lecionava português e literatura na PUC, tinha quarenta e dois anos, morava na Rua Alice, em Laranjeiras, num prédio antigo, com vista para o Cristo Redentor. Era casado há sete anos com Giovanna, uma italiana naturalizada brasileira. O casal não tinha filhos. E, além da paixão por Vanna, apelido carinhoso que se referia e chamava a esposa, ele também amava os livros.

Sam, ademais do interesse de praticar o russo comigo, gostou de saber que eu era casado, tinha dois filhos, uma neta e que, mesmo depois de aposentado, continuava trabalhando na área de educação. Quando eu disse que tinha o hábito de ler como se fosse um russo, percebi um leve sorriso em seu rosto enquanto fazia o sinal de aprovação com a mão direita.

Enquanto caminhávamos em direção ao elevador, perguntei por que os alunos o chamavam de “Padre Sam”. Ele parou, apontou para uma mesa de leitura com as quatro cadeiras desocupadas e disse:

— Vamos sentar ali. Ainda tenho quinze minutos.

Depois que sentamos um de frente para o outro, ele, com a voz serena, disse:

— Concluí o curso no Seminário São José no centro do Rio de Janeiro em1995, e aos vinte anos tinha me tornado um dos mais jovens eclesiásticos do Brasil. A minha primeira paróquia foi a Igreja “Nossa Senhora da Conceição”, na Ilha do Governador, próximo ao Campus do Fundão da Universidade Federal do Rio. Aproveitei o tempo disponível e graduei-me em letras na UFRJ.

— Depois do Rio, voluntariei-me para o sacerdócio na Igreja “São José” de Vila Zelina, na cidade de São Paulo. Embora lá não morasse quase ninguém nascido na Rússia, naquela época, cinco mil de seus quinze mil habitantes eram descendentes de imigrantes russos.

— Fiquei em Vila Zelina por quase seis anos, pratiquei o idioma com os moradores e comprei muitos livros de autores russos. Eles conservam a língua, a religião, as tradições, a cultura e, sobretudo, as delícias russas que podem ser facilmente encontradas nos empórios, tais como: “piroshki”, pãezinhos assados no forno ou fritos, recheados com carne ou vegetais; “varêniki”, pequenas panquecas que podem ser recheadas com quase tudo, de frutas a fígado e os tradicionais chás russos.

— De Vila Zelina, onde vivi o meu mundo russo, fui direto para Itália. Havia passado em um concurso e fui estudar como bolsista na Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG), na Praça Della Pilotta em Roma.

— Morei numa casa de padres. Na parte da manhã, fazia o curso na Faculdade de Ciências Sociais e à tarde permanecia, a maior parte do meu tempo livre, na biblioteca. Eu passava tanto tempo lendo e consultado o maravilhoso acervo de obras que fiquei conhecido dos funcionários que, vez por outra, alguém me procurava para conversar sobre o Brasil.

— Quando eu não estava em sala de aula, nem na biblioteca, estava pesquisando as promoções e comprando livros nas centenas de “Sebos” localizados próximo à universidade.

— A cada dia o meu interesse por atividades acadêmicas e livros aumentava quase como numa progressão geométrica. Onde morei e na biblioteca os meus amigos me chamavam de “Sam Bibliófilo”.

— Nunca tive crise de fé nem deixei de gostar da Igreja Católica. O problema não foi com a instituição, foi comigo mesmo. Passei a dedicar-me mais às atividades acadêmicas e aos livros do que às do mundo religioso. O meu “conflito” interno começou na primeira metade do segundo ano na Itália. Foi mais ou menos na última semana de aulas que conheci Vanna, que estava terminando licenciatura em Literatura e trabalhava num programa da Universidade Gregoriana.

— Ainda lembro-me da primeira vez que a vi na biblioteca. Uma mulher muito bonita, extremamente simpática, morena. Estava com cabelo preso num coque displicente, usava jeans de bainha dobrada, camiseta preta com leves apliques e brincos de argola.

— A gente se apaixonou — confesso. — Mas esse não foi o motivo principal de eu ter deixado a Igreja. Quando nos conhecemos eu já estava em crise. Sempre pensei que, se um dia deixasse de ser padre, essa responsabilidade deveria ser só minha. O mais honesto era pedir dispensa do sacerdócio ministerial do que ser um presbítero com uma namorada ou esposa. Então, ainda em Roma, decidi solicitar a dispensa das minhas obrigações com a Igreja e seguir um novo caminho. Na vida profissional, buscaria o mundo acadêmico e na vida particular faria tudo para ficar junto de Giovanna.

— Cancelei a matrícula na PUG, voltei para o Brasil, a Igreja deferiu o meu pedido de desligamento. E, cerca de um mês depois do meu retorno, em fevereiro de 2008, Vanna chegou ao Rio de Janeiro e, em abril, nos casamos. Foi assim que aconteceu a primeira grande guinada no rumo da minha vida.

— Pronto. Agora você sabe o motivo que levam alguns alunos a me chamarem carinhosamente de “Padre Sam”.

Samuel olhou para o relógio, eram sete e quinze da noite, levantou, pegou a bolsa e disse:

— Preciso encontrar com Vanna, estou no meu horário. Vamos?

Ainda um pouco pensativo com o que acabara de ouvir, levantei-me apressadamente, alcancei Sam e caminhei ao seu lado. Enquanto esperávamos o elevador, ele perguntou:

— E você, Luiz Gustavo? Diga-me por que foste morar e a trabalhar na Rússia, um país geograficamente e culturalmente muito distante do Brasil.

— Sair do Brasil, sem data de retorno, e ter como destino um país asiático foi também uma mudança no rumo da minha vida e de Linda, claro que não há comparação com a transformação ocorrida contigo na Itália. — Eu disse já segurando a porta do elevador.

Depois concluí:

— Na época, eu trabalhava na área de gestão de processos de uma grande multinacional de alimentos e, pela minha facilidade com idiomas, fui convidado para abrir e chefiar um escritório dessa empresa em Moscou. Depois de muitas conversas e ajustes na rotina do dia a dia, Linda e eu decidimos aceitar o desafio e nos mudamos de um apartamento de frente para mar, no Rio de Janeiro, para outro com vista para o “Kremlin” em Moscou.

Na porta do CCBB, nos despedimos com um aperto de mão e um “quase abraço”, o qual nos levou a concluir que, ali naquele primeiro encontro, depois de quase quatro horas de conversa, havíamos nos tornados amigos.

Na calçada, já um pouco afastado de Samuel, eu disse em voz alta e com um leve sorriso:

— Padre Sam, essa história de morar na Rússia ficará pra depois. Primeiro quero aprender um pouco mais de literatura e conhecer o acervo de livros do “Sam Bibliófilo”.

Sem nada dizer, ele respondeu fazendo o sinal de positivo com o polegar da mão direita e devolvendo o sorriso.

Para dar continuidade ao papo e a nossa amizade, que ora se iniciava, marcamos uma pizza, com a companhia das esposas, no início da noite de domingo, seria depois do espetáculo “As três irmãs”.

***

O Retorno à Itália...

Não nos encontramos na chegada nem durante a peça teatral. Ele não respondeu a minha mensagem no WhatsApp. Não insisti imaginando que estivesse envolvido com os seus alunos.

Tão logo os aplausos se encerraram e as cortinas se fecharam, recebi o retorno da mensagem. Sam estava a caminho do salão principal do CCBB, para o mesmo local onde havíamos nos conhecidos. Respondi apenas “Ok”.

De longe avistei Samuel ao lado de uma linda mulher. Uma morena de olhos escuros, cabelos lisos, bem penteados e tocando suavemente no ombro esquerdo, uma típica italiana. Mas que apresentava uma magreza um pouco acentuada para sua estatura. Depois das apresentações e uma conversa descontraída sobre o espetáculo e o livro de Mia Couto, o meu amigo sugeriu irmos à Formato, uma pizzaria em Botafogo, pois tinha boas opções de massas e saladas, ficava perto do metrô, o que facilitaria o nosso deslocamento pra casa, e principalmente porque era uma das preferidas de Giovanna.

A proposta foi aceita sem ponderações e por unanimidade. Logo que chegamos à calçada, fiz sinal para um táxi e seguimos para Botafogo.

À mesa, enquanto saboreávamos salada e pizza de tomate seco com rúcula, conversávamos sobre peculiaridades das cidades que alguém do grupo já tivesse morado ou visitado. Falamos de Florença, de Veneza, de Roma, de Nápoles e de Milão.

Apesar de poucos brasileiros conhecerem Pistoia, eu lembrei e comentei a visita que havia realizado, nos anos oitenta, àquela província próxima à Pisa, na qual se localiza o cemitério onde foram enterrados os corpos dos soldados brasileiros da Força Expedicionária Brasileira, os quais lutaram ao lado dos aliados na Segunda Guerra Mundial.

A esposa de Sam não sabia que o Brasil tinha lutado em solo italiano. Ela gostou de ouvir o meu pequeno relato e demonstrando-se surpresa e interessada no assunto, perguntou-me:

— Luiz Gustavo, sabe dizer-me se atualmente é possível visitar esse cemitério em Pistoia?

— Acredito que sim, mas é bom lembrar que alguns anos depois da guerra os corpos foram transferidos para o Brasil e hoje estão no monumento no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, mas lá permanecem as placas com os nomes dos nossos heróis em um enorme muro de mármore.

Depois que Giovanna falou sobre a sua cidade natal, Arezzo, localizada na região da Toscana, Linda mencionou curiosidades de algumas cidades russas, começou por destacar a beleza dos parques, jardins e palácios de Moscou e de São Petersburgo. Eu proferi comentários sobre as visitas que fiz à Kaliningrado, um enclave da Rússia entre a Polônia e a Lituânia à beira do Mar Báltico, famoso por ter tido entre os seus habitantes o filósofo Immanuel Kant, e a Irkutsk, a cidade mais fria do mundo.

Quando disse que a temperatura naquela cidade chega a menos 64 graus Celsius, Samuel consultando o Google, disse:

— Eu não imaginava que o homem pudesse habitar regiões com temperaturas absurdamente baixas. — E olhando para tela do celular, continuou:

— Oymyakonv, a região povoada mais fria da Terra, registrou a temperatura recorde de menos 71,2 graus Célsius.

— A cidade de Irkutsk e o vilarejo Oymyakonv estão relativamente próximas uma da outra, ambas na Sibéria. — eu concluí.

Enquanto oferecia às mulheres mais uma fatia de pizza, comentei a visita à cidade de Tula, a duzentos quilômetros de Moscou, onde nasceu Liev Tolstoi, um dos grandes mestres da literatura mundial, cujas obras mais famosas são “Guerra e Paz”, um romance que retrata as campanhas de Napoleão na Rússia, e “Anna Karênina”, que o autor denuncia o ambiente hipócrita da alta sociedade na época império czarista.

Depois que eu citei Tolstoi, a conversa sobre cidades ficou praticamente restrita às esposas. Sam, aproveitando a minha deixa, discorreu sobre seus autores e livros preferidos. Falou dos escritores, classificando-os por idiomas e destacando suas obras mais importantes.

Dos autores brasileiros da atualidade, citei Cristovão Tezza e conversamos sobre os seus mais recentes romances: “O Filho Eterno”, “O Professor”, e “A Tradutora”. Sam perguntou-me se eu tinha lido “A Queda” de Diogo Mainard.

— Sim, eu respondi e fiz a mesma pergunta.

— Também li, e frequentemente o recomendo aos meus alunos, pois no livro o autor nos proporciona, dentre diversos outros aprendizados, a oportunidade de entendermos a origem de uma das maiores atrocidades praticada pelo homem: o Programa de Eutanásia, denominado de “T4”. A primeira política da Alemanha nazista de assassinato em massa e que culminou com o genocídio de seis milhões de judeus.

Ao falar de livros, o meu amigo esquecia-se do tempo e do mundo ao seu redor. Quando ele citou “Criança 44”, de Tom Rob Smith, foi indiretamente interrompido, pois a movimentação e a inquietude de Giovanna à mesa trouxe Sam de volta a realidade da pizzaria.

Ela olhou para o marido, que olhou carinhosamente para ela e sorriu. Então a esposa disse:

— Vamos, “amore”, estou cansada.

— Sim, “amore”. Vamos!

Para minha surpresa e, de certo modo, uma pequena frustração, momentos antes de nos despedirmos, quando perguntei quando e onde seria o nosso próximo papo sobre livros, Sam me disse que eles estavam nos preparativos finais para retornarem à Itália, iriam residir em Roma.

Considerando a nossa amizade recente, nos conhecíamos há menos de uma semana, não fiquei à vontade para perguntar o motivo que o estavam levando a sair do Brasil, depois de sete anos vivendo no Rio, onde ele lecionava na PUC e a esposa dava aulas de inglês em dois cursinhos de Laranjeiras.

— Então amigo Samuel, a nossa próxima conversa será em Roma quando formos visitá-los. — Eu disse dando-lhe um abraço de despedida.

— Será muito bom recebê-los. Ainda não marquei o nosso voo. Vanna já está praticamente pronta, mas eu ainda preciso resolver algumas questões importantes antes de entregar o apartamento. Assim que eu tiver a data da nossa ida, farei contato para um encontro de despedida. — disse Samuel me cumprimentando com um aperto de mão.

Giovanna despediu-se de forma educada, mas sem dizer uma palavra sobre a viagem de retorno ao seu país.

Quando estávamos sentados lado a lado em um vagão do metrô retornando da pizzaria pra casa, Linda disse:

— Giovanna tem um comportamento bem diferente das italianas que conheci na comunidade de estrangeiros quando morávamos em Moscou. Ela é fechada, apenas responde as perguntas. Muito pensativa.

— Ainda bem que esse foi o primeiro e talvez o último encontro com a família do seu amigo relâmpago. — Linda, com a cabeça apoiada no meu ombro, disse quase murmurando.

Sem entrar em detalhes e dar continuidade ao assunto, respondi:

— Também achei. Talvez ela não tenha se adaptado ao estilo de vida no Rio.

Depois de um momento de silêncio, eu disse.

— E nenhum dos dois comentou ou fez menção ao motivo da mudança do Rio pra Roma.

Numa quarta ou quinta-feira, cerca de dez dias depois do nosso encontro em Botafogo, por volta das três horas da tarde, recebi uma mensagem no WhatsApp. Era de Samuel: “Está em reunião? Posso te ligar? Ainda não viajei. Estou no Rio”.

— Alô! Como vai Luiz Gustavo? E a família?

— Tudo bem, Sam. E vocês? Pensei que já estivessem em Roma.

— Como ficamos de nos encontrar, liguei apenas pra te dizer que fui obrigado a postergar a viagem, pois ainda não consegui fechar a venda do último lote de livros.

— Sam, você está vendendo seus livros? Por quê? O que houve? — eu perguntei não acreditando no que acabara de ouvir.

— Sim, não tive outra opção. Eu e Vanna tivemos que vender praticamente todos os nossos bens, inclusive o apartamento. Temos que transferir, dentro da legislação, o máximo de dinheiro para nos estabelecer em Roma. — ele respondeu demonstrando insatisfação.

— Samuel, tem certeza que não há outra solução? Talvez enviar os livros por uma empresa transportadora?

— Tenho certeza. No inicio pensei em mantê-los aqui no Brasil em um espaço alugado. Depois vislumbrei transportá-los de navio, em um contêiner, para o porto Civitavecchia que fica a 82 km do centro de Roma. Mas tudo esbarrava em despesas, e precisaremos de uma boa quantia de dinheiro na Itália. Só estou fazendo isso porque é para o bem estar de Vanna. Vender o meu acervo só me traz dor no coração. — disse Sam pausadamente e com bastante tristeza no modo de se expressar.

Sam não mais parava de falar. Eu só ouvia. De vez em quando eu trocava o celular de ouvido e murmurava: Sim! Ah! Hum!

Naquela tarde, conversando ao telefone por quase duas horas, eu soube que Samuel era filho único, seus pais haviam falecidos em um acidente aéreo na época em que ele era seminarista. Nunca teve parentes no Rio. Passou então a viver só no apartamento de Laranjeiras, que por direito de herança passou a ser seu. A sua paixão por literatura vinha da infância, mas foi quando se tornou órfão que começou adquirir livros regularmente. Reformou o apartamento, deixando o mínimo de espaço para cozinha, banheiro e área de serviço e o máximo para guardar livros. Os três quartos foram mobiliados com estantes de madeira, que iam do piso ao teto, em todas as paredes. A sala de visitas, exceto pela existência de um sofá e um rack suspenso com uma tevê, era tomada de armários com prateleiras. A suíte, que também possuía móveis destinados às obras literárias, havia sido redecorada para receber Giovanna, ficando apenas um criado mudo usado para alguns itens do acervo de Sam.

Antes de iniciar a desmobilização para viagem, Samuel possuía na sua biblioteca particular nada mais e nada menos do que cinco mil, quinhentos e dez livros, todos do gênero narrativo, sendo a maioria de romances e contos.

Sobre a venda dos livros, ele contou-me que uns trinta dias atrás havia percorrido as Ruas Buenos Aires e Senhor dos Passos, no centro da cidade, e oferecido às diversas livrarias e sebos o seu acervo literário. A única condição era que comprador deveria adquirir por lotes, ou seja, comprar a coletânea completa dos livros de escritores da língua portuguesa, da britânica, da espanhola e por aí em diante. Na primeira visita aos livreiros, Sam não mencionou as obras de autores russos, os seus favoritos, pois no seu imaginário era como se desfazer de uma fase da própria vida. Ele retardou ao máximo a negociação desse lote, na esperança de deixá-lo na condição de empréstimo em uma biblioteca pública. Mas não deu certo, teria que desfazer do seu acervo predileto também. Quando retornou o contato com o gerente da Livraria e Sebo Baklajam, foi informado que eles não estavam mais interessados em adquirir esse último lote.

Ao chegar em casa no final daquela tarde, comentei com a minha esposa que Samuel precisava vender até os livros para custear a viagem dele e de Giovanna à Itália.

— Talvez ele esteja cedendo aos caprichos da esposa. Decerto, por ter sido padre, não tem experiência com mulheres e acabou se tornando um capacho daquela italiana. — disse linda demonstrando indignação com o que acabara de ouvir.

— Não sei! Talvez não seja uma simples questão de capricho. Conheço-o há poucos dias, mas percebi a sua enorme paixão por livros. É algo como torcer pelo “Vasco”. O indivíduo não muda de clube por um simples rebaixamento do time. Sam não se desfaria dos livros para atender um simples desejo ou sonho da esposa. — eu disse, já com uma ideia na cabeça.

— E por acaso ele comentou a razão da mudança?

— Não, não falou nada. E eu também não perguntei.

Dormi e acordei com a ideia de eu adquirir os livros dos escritores russos do meu amigo relâmpago, como dizia Linda.

Antes de sair para o trabalho, fiz algumas medições nas salas de visita e de tevê. Verifiquei o meu saldo na poupança bancária, pesquisei preços de estantes e de livros usados na internet. E falei com Linda sobre a minha pretensão. Ela simplesmente disse: "se é um desejo seu e indiretamente ajuda o seu amigo, eu nada tenho contra".

No intervalo para o almoço, fui ao Sebo Baklajam e conversei com o gerente. Ele concordou em fechar a compra com Sam, mantendo-me em sigilo no negócio. Mas eu teria também que custear o frete dos livros.

E assim aconteceu. Eu adquiri a coletânea completa dos livros russos de Samuel, sem ele saber. Preferi o sigilo para que fosse negociado pelo preço real de mercado e não de amigo para amigo. Poucos dias depois, eu e Samuel nos encontramos, nos despedimos e ele viajou com a esposa para morar na Itália.

Nos dois meses seguintes, mantivemos contato regular via internet. Usávamos o Skype ou Hangouts para os nossos papos por vídeos. Mas a cada semana, eu percebia que Sam não estava mais se interessando, como antes, nas nossas conversas sobre livros e autores. Frequentemente ele pedia-me para aguardar porque Giovanna o chamava. E como acontecia na maioria das vezes, o desinteresse por assuntos comuns e a distância do local de moradia esfriaram a nossa amizade.

Mas eu, da mesma forma que não acreditava que Samuel tinha vendido os livros para satisfazer caprichos da esposa, também não estava convencido que ele tinha trocado a paixão pela literatura pelas delícias da vida conjugal na Itália, como às vezes Linda inferia. Eu não sabia o que era, mas algo diferente estava acontecendo e não deveria ser coisa boa, pois durante o período que conversávamos pela internet com vídeo, percebia em diversos momentos uma tristeza nos olhos, no semblante e também no modo de se expressar de Samuel.

Naturalmente, seguimos a rotina de nossas vidas e por um bom tempo não mais nos falamos. Eu continuei trabalhando em Botafogo e sempre que tinha uma folga visitava as livrarias do centro da cidade e passava na biblioteca do CCBB, meu lugar preferido para consultar os clássicos da literatura.

O tempo passou inexoravelmente: quinze dias, dois meses, oito meses, um ano, dois anos...

Durante todo esse período, nada aconteceu de especial no meu cotidiano. Linda e eu vivíamos com a felicidade da normalidade da vida. Mas o mesmo não estava acontecendo com Giovanna e Samuel, eles estavam vivendo com a tristeza da anormalidade da vida.

***

De volta ao Brasil...

Quando ouvi o som do meu celular informando a chegada de uma mensagem no WhatsApp, eram vinte para as quatro da tarde, de uma quinta-feira chuvosa de julho. Eu estava na Travessa de Botafogo, próximo à estação do Metrô, comprando o novo sucesso literário de Julian Barnes, “O Ruído do Tempo”, um romance inspirado na trajetória do compositor russo Dmitri Shostakovitch, o compositor mais celebrado da União Soviética. Como habitualmente faço, cerca de dois ou três minutos depois de ser avisado, peguei o celular na bolsa, imaginando ver uma foto da minha neta ou um texto curto de Linda, relembrando-me de comprar alface, rúcula, algo para salada. Mas, fiquei surpreso ao ver que a mensagem era de Samuel: “Está em reunião? Posso te ligar? Estou de volta ao Rio”.

— Alô! Sam! Que ótima surpresa. Vieram passear no Rio? E Giovanna como está?

— Tudo mais ou menos, Luiz Gustavo. E vocês? Linda está bem?

— Eu e Linda estamos bem. Mas o que houve? Por que mais ou menos? Não estão gostando de morar no “primeiro mundo, no mundo desenvolvido”?

— Voltei só para Rio, cheguei faz quinze dias. Estou morando mais uma vez em Laranjeiras, na rua onde fui criado e vivi grande parte da minha vida. Liguei pra agendarmos um papo. Há muito tempo que não converso sobre literatura. O que você acha?

— Acho ótimo, padre Sam. Sugiro na próxima segunda ou terça-feira, porque este final semana já tenho compromisso com a minha esposa e filhos. Amanhã à tarde iremos para Teresópolis.

— Ok! Então, que tal na tarde de terça-feira, entre três e três e quinze? Talvez na biblioteca do CCBB. O que você acha? — Samuel propôs logo que eu terminei de falar.

— Combinado, Samuel. Olha, gostei de saber que você está de volta ao Brasil. Um forte abraço e bom fim de semana.

Na terça-feira, ao chegar à porta de acesso da sala de leitura da biblioteca do CCBB, avistei meu amigo sentado no mesmo local do nosso primeiro encontro. Olhei para o celular, eram três e quinze. Caminhei apressadamente para cumprimentá-lo.

Durante o nosso prolongado aperto de mãos, reparei que Sam não estava com uma boa aparência, bem mais magro e o rosto envelhecido. Mas nada disse ou perguntei naquele momento, apenas sentei à mesa no lado oposto ao do meu amigo.

Depois de uma conversa amena, que não durou nem cinco minutos, sobre os últimos acontecimentos culturais e políticos no Brasil e na Itália, percebi que Samuel, além da aparência física não muito saudável, também estava com o semblante triste, os olhos não tinham brilho e falava sem entusiasmo. Então, perguntei:

— Sam, apesar de não nos falarmos há dois anos, ainda o considero como um amigo.

— Obrigado, Gustavo. Eu também o considero um amigo.

— Então, conte-me o que aconteceu ou está acontecendo. Por que Giovanna não veio contigo? Estou achando você desanimado e, desculpe-me a franqueza, com uma fisionomia não adequada à sua idade. É algo que eu possa ajudar?

Enquanto eu falava Samuel olhava fixamente para uma estante no fundo da sala. Nada dizia, parecia que estava hipnotizado. Calei-me e ele continuou estático por quase um minuto. De repente, Sam largou a chorar baixinho e com a voz trêmula disse:

— Giovanna faleceu há um mês. Não conseguiu vencer o câncer.

Sem saber o que dizer ou fazer, caminhei lentamente em direção ao meu amigo e, ao chegar próximo, sussurrei: — eu não sabia que sua esposa estava doente. Desculpe-me por ter levado a nossa conversa para esse ponto. Vou comprar dois cafés e já volto.

Quando retornei Samuel estava falando ao celular. Ele aceitou o café e afastando o telefone do rosto, murmurou: — Por favor, Gustavo, apenas um segundo. É o gerente da empresa que está montando os armários no meu apartamento.

Ao concluir a ligação, ele reiniciou a nossa conversa, dizendo:

— Eu é que devo desculpar-me por minha fraqueza emocional. Isso não deveria ter acontecido, pois como padre, uma das experiências mais ricas que tive foi lidar com a dor da morte, entender e aceitar a nossa finitude. Naquela época, constatei como é importante ser grato por tudo que recebemos. A vida é um presente, a vida é um dom que não se conquista, é recebido. Tenho muitas saudades de Giovanna, mas não posso deixar de agradecer por tê-la conhecido e vivido quase dez anos com ela.

Em seguida, Samuel levantou-se e, já emocionalmente recuperado, disse:

— Não poderei ficar por mais tempo, Luiz Gustavo. Preciso atender os funcionários da marcenaria que reformou o meu apartamento. Eles irão refazer alguns detalhes que reclamei. Como te falei, voltei de vez para Laranjeiras, teremos outras oportunidades para falar de literatura.

Ao entrarmos no elevador, Samuel disse:

— Você não quer ir comigo? Depois poderemos comer uma pizza na “Formato”. O que acha?

— Ok, combinado. Vou ligar e avisar a Linda pra não me esperar para o lanche.

No trajeto do centro até Laranjeiras, Samuel não parou um minuto de falar sobre o que havia acontecido com Giovanna e que, pela segunda vez, sua vida mudava radicalmente.

No metrô, sentado ao meu lado ele disse:

— Tudo começou numa quinta-feira de setembro, o dia estava lindo, típico da primavera no Rio, céu azul sem uma única nuvem, nós, eu e Vanna, estávamos na clínica de reprodução humana, “Viva Bem”, no Largo do Machado, em uma consulta de rotina do tratamento que ela fazia para engravidar. O médico, analisando o resultado dos exames laboratoriais, identificou que o “antígeno carcinoembrionário”, conhecido pela sigla CEA, estava acima do padrão normal. Ele nos explicou o que era um marcador tumoral, ressaltando que o câncer somente poderia ser diagnosticado por meio de uma biópsia, mas por precaução recomendava que a minha esposa fizesse um exame de colonoscopia. Ela seguiu a orientação médica e depois de inspecionar o cólon teve que realizar uma série de outros exames e biopses. No final de outubro, recebemos o diagnóstico definitivo, câncer no intestino grosso.

— A partir daquela constatação, as nossas vidas perderam o brilho. Giovanna levantou a hipótese de realizar o tratamento em Roma. A decisão de voltarmos para Itália veio tão logo soubemos que o câncer estava no terceiro estágio e que estatisticamente após a cirurgia, quase metade das pessoas não vive mais do que cinco anos. Ela não teve dúvida, resolveu dar continuidade ao tratamento no seu país.

— Agora entendi o comportamento de Giovanna, não muito típico dos italianos, quando a conheci no nosso encontro de dezembro, — eu disse, interrompendo Samuel.

— Sim, Gustavo. Ela já não era a italiana que conheci na biblioteca da PUG. O câncer foi muito agressivo e muito rápido. Ela tinha apenas trinta e seis anos. Ficamos em Roma um pouco mais de um ano e meio, pois apesar de Vanna receber o melhor tratamento que havia na Itália, a doença não regredia. Quando ela mesma concluiu que estava na fase terminal, pediu-me para levá-la para sua cidade natal, Arezzo. Queria ficar perto dos pais e parentes.

— Agora me lembrei de um fato relacionado ao nosso encontro com as esposas na pizzaria. — ele falou e levantou, indicando com a cabeça que desceríamos na próxima estação.

— Quando fizemos a viagem de carro de Roma para Arezzo, Giovanna fez questão de conhecer e visitar o Cemitério dos soldados da Força Expedicionária Brasileira. Ela disse-me que queria agradecer aos heróis brasileiros e despedir-se do Brasil naquela província. Três meses depois que chegamos à Arezzo ela faleceu. Passou seus últimos dias no seu quarto de infância na casa dos pais. Fiz tudo que ela me pediu. — concluiu Samuel.

Ao chegarmos ao apartamento de Laranjeiras, enquanto Samuel orientava os marceneiros na colocação de frisos e de tampões de acabamento nas prateleiras do corredor de acesso à sala de visitas, fui para varanda, sentei-me na única cadeira que vi posicionada entre dois pequenos armários. Abri a mochila, peguei o “Ruído do Tempo” e fiquei lendo.

Quase uma hora depois, ouvi Sam chamar-me:

— Gustavo! Já terminei a faina. Por favor, chegue aqui na sala. Antes de sairmos pra nossa pizza, gostaria de lhe mostrar a reforma que mandei fazer.

Ele mostrou-me todos os cômodos, inclusive o “quartinho de empregada”. Só não havia armários, estantes e prateleiras para guardar livros na cozinha e nos dois pequenos banheiros.

— Os móveis ficaram excelentes, eu acho. — disse Samuel quando estávamos na porta de saída, apontando com os olhos para os compartimentos que havíamos acabado de visitar. — e ao fechar a porta, concluiu:

— Ainda estão todas vazias, mas em breve espero vê-las repletas de livros. Perdi muito cedo as pessoas que amei. Quando fiquei órfão, aos dezessete anos, comecei adquirir as primeiras obras literárias e cheguei a ter cinco mil, quinhentos e dez livros. Agora estou viúvo e sei que nada será como já foi um dia, mas recomeçarei a montar uma nova biblioteca. Não há como viver sem uma finalidade. É preciso planejar e alcançar metas. Não se vive sem uma razão. Não podemos conviver com o niilismo. Quem ama os livros e a literatura não vive na solidão, pois as narrativas e os personagens são eternos e não nos abandonam.

Na pizzaria, durante todo o tempo, Samuel falou de sua estratégia para obter e organizar os livros de sua nova biblioteca. Na conversa, em duas ocasiões, ele destacou, mas sem nada reclamar, que o processo de obtenção seria lento, pois ele ainda estava com dívidas do tratamento da esposa.

Por diversas vezes, eu disse que poderia ajudá-lo na compra do acervo, mas ele educadamente recusou todas as minhas propostas. Entendi e compreendi o comportamento do meu amigo. Não insisti no assunto.

Pagamos a conta de uma pizza média, metade de pepperoni e a outra de tomate seco com rúcula, dois chopes e uma água tônica, e nos dirigimos à estação do metrô de Botafogo.

— Obrigado pela companhia, Luiz Gustavo. E mais uma vez peço desculpas pelo descontrole emocional. Quando voltaremos a nos ver?

— Não há o que agradecer nem a desculpar. — eu disse.

— Estou com alguns compromissos no trabalho e com Linda, te ligarei para combinarmos o próximo papo e pizza, ok?

— Tudo bem! Aguardarei você ligar. Recomendações à Linda.

Ele seguiu na direção da estação Uruguai e eu na de Ipanema, com destino à Barra da Tijuca.

Durante o percurso de volta pra casa, sentei-me junto à janela em um vagão praticamente vazio, fechei os olhos para relaxar e, por algum motivo, comecei a sonhar acordado. Quer sonhasse com o futuro, quer lembrasse o passado, tudo se mostrava triste na vida do meu amigo Sam. A imagem do apartamento, que mais parecia uma loja de venda de armários, não saía da minha cabeça. Eu ficava imaginando ele, no silêncio da noite, sozinho olhando para aquelas estantes e prateleiras vazias, acreditando que um dia as veria repleta de livros. Eu realmente me sentiria melhor se pudesse ajudá-lo. De repente, me veio uma ideia na cabeça: “É isso, ele jamais saberá que fui eu”. — murmurei pra mim mesmo.

Ao abrir a porta de casa, Linda veio ao meu encontro e, parada no hall de entrada, perguntou:

— Está tudo bem, Gustavo? Você demorou. E seu amigo relâmpago? Por que a italiana não veio com ele para o Rio?

— Oi, Linda. Está tudo bem. Podemos conversar na varanda?

— Lógico, querido. Vou preparar um café. Ou você prefere um Martini?

Enquanto bebíamos Martini com gelo e cereja, contei toda a história de Sam e de sua esposa para Linda que ouviu sem nada dizer.

Ao final, falei com Linda sobre a minha ideia de como ajudar o Sam. Ela, exprimindo certa tristeza e constrangimento, disse:

— Gustavo, arrependo-me dos meus comentários sobre o Samuel e Giovanna. Eu nunca imaginaria que a causa do retorno à Itália seria para tratamento de um câncer. Com relação aos livros, se é o seu desejo, eu concordo. Vá em frente e faça o que tem que ser feito.

E eu fiz.

Duas semanas depois...

Já passava das cinco horas da tarde, de uma terça-feira, eu tinha acabado de entrar em casa, quando o meu celular tocou:

— Alô! Gustavo, você não acreditará no que vou lhe contar. — exclamou Samuel com a voz alegre e um ar de felicidade e contentamento.

— Na manhã de hoje, recebi no meu apartamento dez caixas enviadas pela Livraria Baklajam. Fixado em uma das caixas, havia um envelope com uma carta a mim destinada. Vou ler:

“Senhor Samuel Santos,”

“Após uma pesquisa que fizemos em nossos dados sobre os clientes, constatamos que vossa senhoria, nos últimos vinte anos, está entre os três compradores que mais adquiriram nossos produtos. Considerando que recentemente foi implantada uma nova estratégia de negócio da empresa, que passou a comercializar somente obras literárias novas, e que os livros de autores russos que o senhor nos vendeu ficaram intactos no depósito aguardando para serem catalogados, os estamos lhe enviando, como um presente da Baklajam”.

Ainda externando felicidade e surpresa, Sam concluiu:

— Acabei de contar os exemplares, eles restituíram os mil cento e quatro livros. Você acredita, Gustavo?

— O quê! Eu não acredito, Sam. Você deve estar sonhando — eu respondi.

Ao desligar o telefone, me dirigi à varanda, me sentei na confortável poltrona de vime, sozinho, olhando para o mar, assistindo o pôr do Sol, me veio uma sensação de brandura, conforto e bem estar como acontece poucas vezes em nossas vidas.

Sérgio Coutinho
Enviado por Sérgio Coutinho em 27/02/2017
Reeditado em 03/03/2018
Código do texto: T5925712
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.